Rio de Janeiro, 9 de janeiro de 1941

Olá, marquesa de Maricá,

Antes de tudo preciso agradecer os conselhos que me foram tão dramaticamente dispensados. Você usou grandes palavras, fortes generalizações, falou da beleza tétrica da ruindade do mundo, comparada à musica moderna, que horripila mas atrai, nos meus ídolos científicos e literários, cada um, como um forçado, trazendo uma contribuição à Dúvida Universal, no sofrimento como Motor Imóvel da produção artística, além de outras coisas gigantescas.

Confesso que, à medida que eu ia lendo, fui ficando pequenino, pequenino.

É como se o alfaiate fizesse uma roupa para o Primo Carnera[1] e a mandasse para mim.

Não, meu bem, sobra muito pano. Estou abafado. Que vou fazer com isso?

Você me aponta uma solução “misturada aos séculos, a todos os homens, a toda a natureza”? Sinto até vontade de voltar aos tempos do Joel Miranda, o tal de Minas, e pedir licença a você para publicar a sua carta em todos os jornais. Aquela carta não foi para mim, foi um panfleto dirigido a toda a HUMANIDADE. Quem sabe se, esclarecidos pela luz forte que dela irradia, não deixariam os exércitos de lutar e se uniriam todos os homens para, num esforço único, se lançarem à busca da SOLUÇÃO, misturada ao Cosmos.

Estou imaginando que intensidade não teriam as suas palavras, ditas por Orson Welles, no tom daquele jornal do Cidadão Kane. Papagaio, que sucesso!

Não, benzinho, eu sou muito mais simples do que isso. Minha angustiazinha mofina não está ligada aos grandes problemas.

Oh, deusa Clarice! Sê clemente! Não pronuncies contra mim, com ar tão solene, a sentença da minha condenação eterna.

Deixa-me viver pacatamente como bom sujeito. Eu quero me preocupar com o padeiro, com o leiteiro e com os dentes do guri.

Não me jogues, a mim tão pequenino e infantil, nessa rua de monumentos colossais, onde o Edifício d’A Noite[2] é pixote, que se chama VIDA. Não me aterrorizes com os holofotes antiaéreos que dirigiste contra mim – eu voo muito baixo – é só estender a mão pra me apanhar.

No momento eu só tenho um grande problema – é saudade de você! O resto é bobagem.

Peço à “Fessora” assinalar todas as expressões infantis das minhas cartas, pra que eu me possa corrigir.

Enquanto isso, vá me estendendo a mão, que eu preciso dela. Se você não diz nada, é porque há muita coisa dentro de você. Eu gostaria que você se confiasse um pouquinho mais a mim. É isso que eu chamo de jogo unilateral. Não pense que eu ando atrás só de “belas coisas simples”. Eu quero qualquer coisa, desconexa, contraditória, insegura, não tem importância, desde que seja sua. As definições redondas e grandiloquentes, as coisas categóricas e acabadas não me satisfazem, porque eu não sou assim. Se não quiser dizer nada, também não faz mal, basta me estender a mão.

Depois de escrever tanto, fiquei melhor, a verdade é que tenho lido, ouvido música e estou até com vontade de estudar Direito Civil. Tenho pouco papel e não há jeito de arranjar mais, no momento, por isso escrevo nas costas das folhas.

Há trechos estupendos do Morgan,[3] tão lúcidos que eu quase arranco a página e mando pra você.

Li hoje, de manhã, uma passagem, tão interessante e a propósito, que vou reproduzir:

One night at Royan, the night after her walk through the woods with Madeleine, Courcelet had spoken of George Sand, the conversation had run to music and to Chopin, and Templéraud had attacked the Romantics, saying that they were sentimental, that they lied.

Cugnot had taken fire, not in defense of the Romantics, but in counter-attack upon those whose catchword for all feeling but hatred was “sentimentality”. He had asked which was the greater lie – to be sentimental or to be paralyzed by the fear of sentimentality?

(descobri mais papel no fundo da caixa, posso me espraiar) continua Morgan:

Was it not better, in art, wrong in boldness than wrong in fear? And Courcelet had said: “If I may be allowed to speak with authority, as one whose whole life is a lie and certainly not a romantic one (Courcelet é intelectualizado 100%), I suggest that the greatest of lies is by self-consciousness to freeze the heart. To be incapable of surrender is the final cowardice. The priests call it spiritual pride”.

Vou parar por aqui, senão seria capaz de copiar o livro todo e com que letra…

Um abraço, meu bem, e fica certa de que tens um lugar garantido no céu, por suportar toda essa xaropada.

P.S.: Estou até em preparativos para o carnaval. Vou ao cinema, depois do jantar, ver Meu marido maluco, que dizem ser boa comédia.

Arquivo Clarice Lispector / Acervo IMS. Esta carta foi publicada em Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, pp. 24-26.

[1] N.S.: Lutador de boxe italiano da categoria de pesos pesados. Ganhou o título de Campeão Mundial em 1933.
[2] N.S.: Edifício Joseph Gire, no Rio de Janeiro, mais conhecido como A Noite. Inaugurado em 1929, foi sede do jornal A Noite e da Rádio Nacional.
[3] N.S.: Charles Langbridge Morgan (1894-1958), autor de The Voyage.