São Gabriel, 10 de março de 1841
Ao casal Costa
Caros amigos,
Depois das penosas aventuras por que passamos, parece um sonho viver de novo numa casa confortável e poder escrever com calma esta carta que, graças à cortesia do nosso novo amigo Francesco Anzani,[1] espero que chegue até vocês em pouco tempo. Imaginem que Francesco ainda tem paciência para me ensinar ortografia, e eu estudo durante as longas horas de ócio que frequentemente passamos juntos no conforto dos nossos quartéis de São Gabriel. Estamos todos sãos e salvos, mas só por milagre.
Quando nos despedimos estávamos bem e com saúde, encorajados com a provisão de alimentos que vocês nos quiseram dar e pelos votos de boa sorte. Mas logo a viagem se tornou penosa, por causa das chuvas incessantes. Nunca tomei tanta chuva em toda a minha vida.
Alcançamos as tropas dos farrapos e iniciamos com eles a caminhada em direção das alturas. A coluna de companheiros parecia estender-se até o infinito. Ministros, parlamentares, funcionários, empregados, artesãos e pobretões, todos fugitivos, com suas famílias e coisas, animais, provisões, armas, munições e até mesmo máquinas para imprimir jornais.
Vocês não imaginam o sofrimento de todos; por causa do terreno totalmente intransitável, era preciso cortar a vegetação densa metro por metro, a chuva incessante ensopava nossas roupas, os pés gelados escorregavam na lama, de noite tremíamos de frio e nos apertávamos uns contra os outros, como animais, para conseguir um pouco de calor. As reservas de alimentos logo se esgotaram e a caça começou a rarear. Não conseguíamos mais acender fogo, pois a madeira estava toda úmida. Para tornar aceitável algum raro pedaço de carne, nós o colocávamos na garupa do cavalo, sob a cela até ele cozinhar um pouco com o calor do animal.
Depois de atravessar o vale do rio das Antas, começamos a subida. O sofrimento aumentou ainda mais, por causa do terreno íngreme e da falta de alimento. Todos sofreram, especialmente as crianças e as mulheres, que depois de algum tempo não conseguiam prosseguir. A caminhada era muito difícil e as crianças caíam exaustas. As mães, não querendo largá-las, abatiam-se com elas, apesar de saberem que não teriam como se salvar. Às vezes os homens sem coragem de separar-se dos seus ficavam com eles ou então os matavam, para não entregá-los a uma lenta agonia. Com um reflexo de horror nos olhos, continuavam a caminhada cada vez mais devagar, conscientes de que logo também cairiam exaustos na lama e seriam cobertos pela densa vegetação.
Acho que por muito tempo será possível reconstituir a nossa trajetória pela fila de esqueletos que marcam o caminho. Com certeza nossas perdas foram mais graves do que aquelas que sofremos nas muitas batalhas de que participei.
Durante a subida eu procurava frutas e raízes para comer, qualquer coisa que me pudesse alimentar, porque meu leite estava diminuindo e Menotti,[2] sob o poncho que o prendia ao meu colo, quase já não tinha forças para chorar. Seus gemidos se tornavam cada vez mais fracos, a carinha pálida se enrugava, estava sujo, trêmulo e a única coisa que eu podia fazer era soprar por cima dele para lhe dar um pouco de calor. Eu usava folhas e alguns trapos que restavam para conservá-lo o mais enxuto possível. Nas raras paradas eu lhe dava de mamar. Muitas vezes vi, com dor no coração, alguma outra mulher tirar seu bebê do meio das roupas e encontrá-lo morto. Imaginem minha apreensão
Pela primeira vez senti minhas forças diminuírem e me cansava até por carregar o peso do menino, que afinal só tinha algumas semanas de vida. Fiquei grata a José,[3] que, voltando-se para ver se eu o estava seguindo, percebeu minha angústia e quis carregar Menotti, agasalhando-o embaixo do poncho e conservando-o quente com seu bafo por algum tempo.
Quando, mais uma vez, a aurora chegou à serra com a sua luz pálida, ele veio até mim. Eu estava deitada, encostada a uma rocha tentando me proteger do frio de algum jeito. José estava acompanhado de um soldado e trazia duas mulas. Disse para eu partir imediatamente e pôr nosso filho a salvo do outro lado da montanha. Ele me olhava daquele jeito de quem não admitia discussão e acrescentou que aquela era a única esperança para Menotti. Devolveu-me o menino depois de beijá-lo carinhosamente. Depois me abraçou e me empurrou na direção das mulas, evitando o meu olhar. Ele não quer me mostrar o quanto esta decisão está lhe custando, pensei. É claro que eu estava sem forças para resistir. Peguei o Menotti, reduzido a um pacotinho, e parti com o soldado, que puxava as mulas com muito esforço, tropeçando nas pedras e nos arbustos que abundavam na vegetação virgem da serra.
Eu continuava com a impressão de estar escalando o infinito. Às vezes parecia que eu tinha lâminas fincadas na cabeça, e eu procurava segurar o enjoo que tomava conta de mim no ar rarefeito da montanha. Na tarde seguinte, quando eu já estava achando que se saísse mais uma vez não teria forças para me levantar, notei que o terreno se tornava menos íngreme. Então pude montar em uma mula e fui revezando, montando ora em uma ora em outra, para elas não desabarem de exaustão. Passamos mais uma noite quase sem dormir, torturados pela fome. Menotti ainda respirava, mas, quando eu tentava dar-lhe de mamar, mal o sentia sugar.
No dia seguinte, enquanto nos arrastávamos mecanicamente, passo a passo, de repente senti que o terreno formava um suave declive. Olhei ao redor e não consegui acreditar: a floresta tinha quase acabado e à nossa frente estendiam-se colinas e campos cultivados a perder de vista. Caminhamos então em direção a uma fumaça que apareceu ao longe, e finalmente chegamos a um acampamento onde alguns soldados estavam deitados ao redor de uma fogueira, bebendo de seus cantis. Assim que nos viram, amontoaram-se ao nosso redor para saber quem éramos; pegaram Menotti, já quase morto, e deram-lhe um banho, envolveram-no em roupinhas limpas e lhe deram leite, gota a gota. Eu também bebi leite de uma tigela fumegante, e aquela me pareceu a bebida mais fina do mundo.
Enfim, caros amigos, estávamos salvos. […] Poucos dias depois, o único vestígio do pesadelo eram os meus pés que continuavam sangrando. Ainda tive de mantê-los enfaixados por muito tempo.
Anita Ribeiro Garibaldi
Carta ditada a Francesco Anzani, em São Gabriel.
Acervo Instituto Anita Garibaldi
[1] N.S.: Francesco Anzani (1809-1848). Italiano nascido em Alzate, deixo a Universidade de Parma e foi para a França, onde se integrou ao movimento republicano de 1832. Preso em Gênova, em 1838, acabou escapando e fugindo para a América. Na cidade gaúcha de São Gabriel conheceu Garibaldi e Anita, ao lado de quem, em 8 de fevereiro de 1846, lutaria na batalha de Santo Antônio do Salto, no Uruguai.
[2] N.S.: Domenico Menotti Garibaldi (1840-1903) foi o primeiro filho de Giuseppe e Anita Garibaldi. Nascido na cidade gaúcha de Mostardas, no rancho da família Costa, viria a ser um dos principais idealizadores da luta pela Unificação da Itália, país onde morreria, na cidade de Roma.
[3] N.S.: Giuseppe Garibaldi (1807-1882) foi guerrilheiro e herói nascido na França e morto na Itália. Emigrou para o Brasil e se integrou às tropas gaúchas na Revolução Farroupilha, em que exerceu sua liderança com talento e bravura antes de voltar para a Itália para, ao lado da mulher, Anita Garibaldi, lutar pela unificação do país.