Dresden, 4 de março de 1857

Meu senhor,

A bondade suma de vossa majestade, dignando-se permitir-me que alguma vez ouse dirigir minhas cartas a vossa majestade, faz com que eu abuse dessa tão honrosa, quanto, na minha humildade o confesso, pouco merecida dis­tinção.

Demorei-me em Dresden estes dois meses para me familiarizar com a língua alemã, e também porque na proximidade em que estava de Leipzig podia mais facilmente vigiar a minha reimpressão. O trabalho de retocar coisas de que eu me julgava livre de uma boa vez por todas, sendo, além do mais, aquilo para que me sinto com mais repugnância, me tem levado bastante tempo, principalmente quando os compositores sabem pouco por­tuguês, e o revisor da tipografia é homem por demais versado no espanhol, em cuja língua se tem dado ao trabalho de corrigir-me.

Alguns anos não passam inutilmente na vida do homem, conheci-o por experiência, quando agora, revendo os meus volumes, vi quanto neles tinha de emendar, substituir e cortar. Bem conheço que podia ser mais rigoroso comigo mesmo, que o devia ser para me não mostrar inteiramente indigno da alta proteção de vossa majestade, mas faltou-me a coragem para sacrificar mais que o dízimo do que já estava publicado. Cumprindo este preceito da Igreja, julgo ficar em paz com a minha consciência de autor.

O Brockhaus, que se encarregou desta edição, e que mostra fazê-la com prazer por ser a primeira vez que trabalha para o Brasil, prometeu-me dá-la concluída até o fim deste mês. Assim, ainda mesmo em Berlim, para onde parto apenas tenha lançado esta no correio, poderei continuar a diri­gir a impressão.

A facilidade com que se fazem esses trabalhos em Leipzig, e principal­mente naquela oficina, me levará talvez a imprimir o meu drama Boabdil[1] e um dicionário tupi-português, que tenciono oferecer ao Instituto [Histórico e Geográfico Brasileiro].

O dicionário me parece oferecer alguma vantagem sobre o de Anchieta, e do anônimo, só com a simples inversão das línguas; mas independente disso haverá porventura nele alguma novidade, que não será puramente poesia. Trabalhos eram esses que eu tinha feito há bem tempo, mas não coordenado. Veio-me essa ideia, lendo um catálogo de Brockhaus, sobre filologia, em que ele dá como meus os apontamentos sobre a língua indígena, hoje em uso no Alto-Amazonas, que eu apresentei ao Instituto, declarando que os devia à bondade do atual senhor bispo do Pará. Pareceu-me que poderia emendar esse erro, para o qual não concorri, nem mesmo involuntariamente, publicando o que a tal respeito havia anteriormente escrito; e julgo tanto mais oportuno esse trabalho, quando devendo-se ao Instituto a ideia da conveniência desse estudo, e tendo-se ultimamente publicado alguma coisa a este respeito, era razoável que algum dentre os seus mem­bros acompanhasse o movimento que a ele se deve.

A minha intenção era publicá-lo em tupi, português e francês ou latim; mas quando principiei com o trabalho de coordenação, vi que isso me levaria muito mais tempo do que aquele de que posso dispor; e reservando para depois fazer esse negócio com o Brockhaus, restringi-me por agora ao português.

Tenho pronta para a impressão justamente metade do trabalho; e para dar começo a ela espero receber umas ordens, que ainda me não chegaram. Se vierem nestas duas semanas, tudo estará pronto nos primeiros dias de abril.

Quanto ao drama, aconteceu que eu o lesse aos doutores França e Sousa, que aqui se acham. Não desgostaram dele. O França traduziu-o para o alemão e parece que não ficou mal. Ainda assim vai ser novamente revisto, e supõe o tradutor que ele irá à cena aqui em Dresden e talvez também em Leipzig. Representado ele, aparecerão livreiros que o queiram imprimir, quando não for senão pela curiosidade de ser um drama brasi­leiro. Neste caso, eu não quereria que a tradução aparecesse impressa antes do original. Infelizmente depende esta impressão das mesmas ordens, que tanto cuidado me tem dado.

Visto que falei de brasileiros que nos achamos em Dresden, aconteceu por casualidade que nos encontramos aqui os doutores Sousa e França, o Stockmayer e eu. O França tem dado umas preleções em língua francesa sobre a constituição, código comercial e literatura do Brasil. O Sousa vai publicar as suas memórias, ou pelo menos dar começo a isso. Se o Stockmayer é o nosso maestro desse nome (creio que será, mas não tive ocasião de lhe falar), o Brasil, quanto a artes, letras e ciências, poderia inquestionavelmente estar melhor representado; mas, ainda assim, não ficou de todo sem representação em Dresden.

Meu senhor, fazendo os mais sinceros votos pela continuação da pre­ciosa saúde de vossa majestade e da família imperial, permita-me vossa majestade beijar-lhe humilde e respeitosamente as suas augustas mãos.

De vossa majestade o mais humilde e dedicado súdito

Antônio Gonçalves Dias

Anais da Biblioteca Nacional: correspondência ativa de Gonçalves Dias. Rio de Janeiro: Divisão de Publicações e Divulgação de Biblioteca Nacional, 1971, pp. 211-213.

[1] N.S.: Peça que trata da vitória dos mouros em Granada, Espanha, governada pelo rei Boabdil. Foi publicada postumamente, em 1868.