Petrópolis, 9 de fevereiro de 1969

Já quase meio-dia. Leitura descansada dos jornais, embora estes continuem a apresentar o aspeto melancólico e, sobre­tudo, o Correio da Manhã, de uma imprensa autoamordaçada pelo militotalitarismo que é, agora, o regime a que estamos submetidos desde o trágico dia 13 de dezembro de 1968, em que se consumou – por tempo indefinido – a entrega do Bra­sil aos militares e aos tecnocratas, seus dóceis servidores. A tecnomilitocracia, desde então, tomou conta do Brasil, como conclusão absolutamente lógica e prevista por todos que ti­nham dois dedos de sensibilidade política, como o Santiago Dantas que, na manhã de 1 de abril de 1964, me disse por telefone: “Vamos ter vinte anos de fascismo”. E ele sabia do que falava, pois conhecia por dentro o regime que se havia, de certo modo, suicidado com os episódios dos marinheiros e dos sargentos, e pela indecisão do Jango, somado à inflação galo­pante e, naturalmente, minado pela conspiração dirigida pelo chefe do Estado Maior das Forças Armadas, marechal Castelo Branco, futuro presidente eleito […][1] pelo Congresso e que, por sua vez, preparou o terreno para a “segunda revolução”, desencadeada, afinal, pelo ótimo pretexto que lhe forneceu o inábil discurso do Marcito contra o Exército.[2] E, assim, estamos nós mergulhados neste regime de arbítrio militar, de autori­tarismo revolucionário fascista e puritano e tecnocrático, que desova, semanalmente, uma dezena de decretos-leis, afastan­do toda possibilidade de reação da opinião pública, totalmente silenciada pelo arbítrio autoritário, pela autocensura da im­prensa, pela euforia dos negócios capitalistas, pelo direitismo aparentemente invencível contra o qual só vejo três soluções: o tempo, que dissolve tudo no Brasil – a começar pelo nosso caráter, desfibrando o povo e impedindo toda reação; a luta dos milicos entre si na cúpula, de que já houve uma mínima amostra com a saída do general Albuquerque Lima, tido como o “homem forte” do 13 de dezembro ou, então, terceira hipóte­se – e a mais improvável das três: uma guerra universal com a vitória da Rússia, já então aliada à China, contra os Estados Unidos e os regimes capitalistas, o que faria, no dia seguinte, o desmoronamento de toda a gorilada e a substituição pela gorilada comunista – que seria talvez ainda pior

Das três hipóteses, só a primeira é viável, mas… daqui a quanto tempo? Ninguém sabe. Os vinte anos do Santiago? Pode ser, o que significa que já não voltarei a ver a liberdade na políti­ca brasileira, pois os ensaios que já se estão fazendo de reabrir o Congresso são a pior das imposturas, pois será num regime “constitucional” ou, pelo menos, “decreto-legal”, em que o Con­gresso virá apenas coonestar o arbítrio do Poder Executivo.

Com isso, será que ao menos a liberdade de crítica voltará aos jornais? Já é o mínimo a que podemos aspirar. Pois você bem sabe que não acredito, nem por um segundo, na existên­cia de qualquer levante popular ou qualquer guerrilha. Como estamos prestes a pensar e dizer, o mal mais catastrófico des­ta segunda revolução é abastardar o caráter brasileiro que, de si próprio, já não é muito forte, como pessimisticamente já o dizia Mário de Andrade, com o Macunaíma. A prosperidade econômica que está se esboçando vai ter duas consequências: os ricos ficarão cada vez mais sem-vergonha e, os pobres, cada vez mais desiludidos e céticos. Somando o sem-vergonhismo dos beneficiados diretamente pela sua prosperidade (se é que vem mesmo…) com o ceticismo, digo, o cinismo natural dos pobres, já desiludidos de tudo o que seja voto, política, liberdade, lei, e só pensando em ganhar dinheiro para não morrer de fome – somando as duas parcelas, temos o resul­tado do neocolonialismo, ou antes, o autocolonialismo, isto é, a oligarquia dos militares e tecnocratas aliados e dando as cartas, colonizando a massa do resto dos brasileiros, inclusi­ve de nós outros, pseudointelectuais, igualmente contamina­dos pelo abastardamento geral do caráter do povo.

Como você vê, não vejo nenhuma janela próxima por onde se possa respirar. E o que resta a um pobre cristão como eu é… voltar à literatura. Mas como a literatura já o ultrapas­sou de muito, o remédio heroico seria… quebrar a pena ou morrer. Mas como só se morre decentemente quando se faz totalmente todo o nosso dever, a angústia, como acontece sempre quando nos defrontamos com uma tirania quase in­tolerável, é saber onde está o dever. Quebrar a pena? Cons­pirar? Acomodar-se?

Nenhuma dessas hipóteses me agrada, por motivos dife­rentes, pois afinal não podemos sair de nós mesmos e, se bem que a conspiração, a ação clandestina contra o regime, fosse a solução mais decente – e imagino que há centenas de pessoas vivendo assim ou, pelo menos, dispostas a isso, como esses jovens líderes estudantis hoje presos (e são centenas, cujos nomes não sabemos) ou calados, à espera do momento oportuno – o fato é que não tenho fibra nem gosto, nem idade para isso. Tenho é mesmo de morrer, quebrar a pena ou… deixar que a graça de Deus vá me inspirando a ação da pena e da palavra – já que sou, hoje em dia, incapaz de qualquer ação – no sentido de escrever e falar o que for possível, dentro desse regime de hipocrisia em que vivemos, sem liberdade de escrever ou de falar mas, ao mesmo tempo, lendo e ouvindo da boca desses bandidos que assaltaram o poder (e a maioria de boa-fé) a afirmativa de que estamos em plena democracia, a única compatível com os altos interes­ses nacionais. É de chorar com Gregório de Matos.

[…][3]

Ciao

P.

Alceu Amoroso Lima. Diário de um ano de trevas: cartas de Alceu Amoroso Lima para sua filha Madre Maria Teresa: janeiro de 1969 – fevereiro de 1970. Organização de Frei Betto e Alceu Amoroso Lima Filho. São Paulo: IMS, 2013, pp. 52-54.

[1] N.S.: Texto suprimido na edição-base.
[2] N.S.: No dia 2 de setembro de 1968, o deputado Márcio Moreira Alves, conhecido como Marcito, proferiu no Congresso Nacional um discurso no qual conclamava o povo a boicotar os desfiles de 7 de setembro e solicitava às jovens brasileiras que não namorassem oficiais do Exército. O episódio teria contribuído para a emissão do AI-5.
[3] N.S.: Texto suprimido na edição-base.