Nem eu nem você fomos jamais presidentes da República. É pena, porque seria uma experiência tremenda. Às vezes o presidente é apenas uma pose. Isso e nada mais. Entretanto Bismarck, primeiríssimo-ministro, estadista de gênio, solene como se fosse estátua de si mesmo, parecia abaixo do bem e do mal. O estadista não apertava a mão de ninguém. Havia, entre ele e qualquer um, cavo e miserando abismo.

Contam seus biógrafos — que mentem como todos os biógrafos — que jamais deixou escapar um sorriso. Mas não era bem isso que eu queria dizer. Eis o que eu queria dizer: um dia, Bismarck quis fazer uma guerra. Vejam a simplicidade com que ele fez a guerra. Falsificou um telegrama. Perguntarão os chefes de família de Vaz Lobo:[1] – Mas teve coragem de fazer isso? Sim, teve essa coragem. Mas um telegrama não aproxima nem afasta ninguém. E não comprometeu Bismarck. Este fez uma guerra e nada mais. E saiu maravilhosamente intacto.

Mas eu quero falar de presidente. Trata-se do general João Baptista de Figueiredo, que todos nós chamamos de Figueiredo. É certo que muitos falam mal do presidente. Não importa, nada importa. A glória é a soma de palavrões que uma certa figura vai provocando. E, assim, apedrejado por uns, acaba sendo aplaudido de pé, como nos finais de ato.

De Figueiredo, poucas vezes falo. Mas vou falar agora. Gosto de Figueiredo. Vou lhes contar como o conheci. Foi num jogo do scratch, em 70. Médici[2] convidou-me para ver o jogo da tribuna de honra. Entre parênteses, eu sou um sujeito que fica tenso numa tribuna de honra. “Convencional”, dirão. E eu próprio direi: – “convencional”. O Brasil ganhou e voltei para o Palácio das Laranjeiras, na comitiva presidencial. Foi aí que a Fatalidade pôs o general Figueiredo no meu caminho. Com ele, estava Andreazza,[3] que se juntou a nós.

Tomamos o automóvel. Nada mais doce do que esta carona do Figueiredo. Ele era, então, chefe do Gabinete Militar de Médici. Mas eis o que senti: não era banal a figura do João Baptista. Saltei no portão do Parque Guinle, e eles se foram.

O presidente tem o rosto dos Figueiredo. Nunca me passou pela cabeça que o destino do meu filho Nelson Rodrigues Filho pudesse depender de João Baptista. E, então, esta carta deixa de ser dirigida ao Jornal do Brasil, e passa a ser dirigida ao presidente Figueiredo.

Figueiredo,

O que eu queria te dizer é que é estranho ser bem tratado pelo presidente da República. (Um dia, eu, doente, precisei falar com o presidente. Ainda vacilei:  presidente da República dando audiência ao telefone. Acabei ligando. Disse quem era e ele veio me atender. Admirável a recepção que me fez. Em grandes brados, me tratou na palma da mão. Eu tinha um pedido e o fiz. Se ele me atendeu, permitam uma certa discrição.) Bom. É chegado o momento de falar de anistia. Eis o que eu queria dizer, a você mesmo, meu querido João Baptista:

Quis o destino que meu filho, Nelson, na altura dos 24 anos, entrasse na clandestinidade. Talvez, um dia, eu escreva todo um romance sobre a clandestinidade e a prisão do meu filho. A prisão não é tudo. (Preciso chamar você, novamente, de senhor.) O senhor precisa saber que meu filho foi torturado. Isso me foi ocultado pelo Nelsinho, por causa do meu estado de saúde.

Ora, um presidente não pode passar como um amanuense. Há uma anistia. Tem que ser uma anistia histórica. O que não é possível, presidente, é que seja uma anistia pela metade. Uma anistia que seja quase anistia. O senhor entende, presidente, que a terça parte de uma misericórdia, a décima parte de um perdão não tem sentido. Imagine o preso chegando à boca de cena para anunciar: — “Senhores e senhoras, comunico que fui quase anistiado”.

Não se faz isso para uma plateia internacional abismada. Que se dirá em todas as línguas e sotaques? E que dirá o próprio Deus? Bem, nunca se acreditou tão pouco em Deus. Mas não importa, nada importa, o que importa é o que disse Dostoiévski, certa vez: — “Se Deus não existe, então tudo é permitido”.

Estou dizendo tudo isso, Figueiredo, de coração para coração, de alma para alma. Dirão os lorpas e pascácios: — “O presidente não está sozinho”. Está. Se der a anistia que Deus quer.

João Baptista, meu filho Nelsinho vai ter o filho na prisão, em agosto.

Deus te ame eternamente, Figueiredo.

Nelson Rodrigues

Rio de Janeiro

Nelson Rodrigues. O remador de Ben-Hur: confissões culturais. Seleção e organização de Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 288-290.

[1] N.S.: Bairro da zona norte da cidade do Rio de Janeiro.
[2] N.S.: General Emílio Garrastazu Médici, presidente do Brasil de 30 de outubro de 1969 a 15 de março de 1974.
[3] Mário Andreazza, ministro do Interior do governo Figueiredo.