Berlim, 23 de julho de 2018

Para os que trabalham no ambiente acadêmico e gostam de estudar e de pesquisar, há poucos países tão interessantes e desafiadores quanto a Alemanha. Com suas universidades, laboratórios, bibliotecas, museus, centros de documentação e instituições de fomento, o país atrai, anualmente, centenas de estudantes e investigadores estrangeiros. Muitos vêm beneficiados por bolsas oriundas de seus países; outros, pelas oportunidades oferecidas pelas instituições alemãs. É o meu caso, em grande medida.

Eu sou, caríssimos, uma muito feliz (mas muito feliz, mesmo!!!) bolsista da Fundação Alexander von Humboldt (Alexander von Humboldt-Stiftung / AvH). Vim fazer meu Pós-Doutorado em História da Arte aqui, durante 18 meses, vinculada à Hochschule Hannover, com tutoria do Prof. Dr. Friedrich Weltzien. Todavia, como já defendi o Doutorado há mais de 10 anos, fui enquadrada no que eles chamam de “Estágio Sênior”. Então, sou “sênior”, condição que me deixa meio nervosa, devo admitir…

São muitos os programas de intercâmbio acadêmico mantidos ou incentivados, total ou parcialmente, pelo governo alemão. O mais popular, sem dúvida, é o DAAD (Deutscher Akademischer Austauschtdienst / Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico), que oferece  bolsas em várias modalidades, todos os anos. O mais cobiçado, porém, é o da AvH.

O que dizer da bolsa Humboldt? Ela é um luxo, “apenas” isso. Não vou ficar contando todas as vantagens, para não parecer exibida. Todavia, rápidas informações: uma das coisas que a AvH se orgulha em divulgar é sua rede que congrega cerca de 28 mil humboldtianos, 55 deles detentores do Prêmio Nobel. Trata-se de uma “pressão sutil” para que os bolsistas entendam em que meio estão transitando. A Humboldt também tem dois lemas: “Não investimos em projetos, mas em pessoas” (leia-se: o que importa é a excelência acadêmica e a alta qualificação individual do pesquisador e o seu potencial de crescimento como cientista), e “Uma vez humboldtiano, sempre humboldtiano” (é isso mesmo-mesmo-mesmo!). Para os que souberem cultivá-la, é uma bolsa permanente, que proporciona redes e contatos para a vida inteira. E que, também por isso, é mais do que uma “bolsa”: é um prêmio. Prêmio à trajetória acadêmica e voto de confiança no que o pesquisador faz e em como faz. Então, é essa coisa empolgante que estou vivendo. E, ao que tudo indica, sou a primeira pesquisadora da área de Artes Visuais / História da Arte, no Brasil, que ganha a Humboldt.

Não foi à toa que o rei prussiano Frederico Guilherme IV definiu Alexander von Humboldt (1769–1859) como “o maior e mais formidável dos homens desde o Dilúvio”. Falante excepcional e escritor contumaz, Humboldt cativava distintos públicos: cientistas e políticos, estudantes e professores, agricultores e artesãos, artistas e músicos. Foi um dos maiores intelectuais de seu tempo, desenvolvendo trabalhos em Geografia, Botânica, Geologia, Mineralogia, Etnologia e sempre acreditando que o fundamental a um cientista era não apenas saber coletar e analisar dados, mas observar, com emoção e intuição. O frontispício de seu primeiro livro, Ensaio sobre a Geografia das Plantas (lançado em 1805), ilustra bem isso: a gravura exibe Apolo, o deus grego associado às artes, erguendo o véu de Deméter, a divindade das colheitas e dos ciclos naturais. É com arte, poesia e imaginação, portanto, que se poderia compreender a força, a beleza e as interconexões de nosso planeta. Essa visão holística, que concebia a Terra como um organismo vivo, transformou para sempre a forma de pensar o lugar e a relação do homem com a natureza. Aristocrata que investiu toda a sua herança em viagens e pesquisas – conta Andrea Wulf na premiada biografia A invenção da natureza: a vida e as descobertas de Alexander von Humboldt, ele, já idoso e sem condições de sustentar seus próprios projetos, dava um jeito de buscar financiamento para jovens cientistas, além de responder a pelo menos metade das cerca de 2.000 cartas que recebia anualmente.

Fomento e conexões. Algo da natureza de Humboldt. Essa é a marca da fundação que lhe presta homenagem e que, vou logo anunciando, não tem absolutamente nada a ver com a “Humboldt Universität zu Berlin”, a primeira universidade da capital alemã, instituída em 1810 como “Universität zu Berlin” pelo linguista e educador Wilhelm von Humboldt (irmão de Alexander), e que passou a se chamar “Humboldt” em 1949, em sua homenagem. Com exceção do nome, as duas entidades não têm nada em comum.

A Alexander von Humboldt-Stiftung (AvH), como conhecemos hoje, nasceu em 1953, tendo sua sede na cidade de Bonn, capital da antiga Alemanha Ocidental. Sua origem, contudo, remonta a 1860, um ano depois do falecimento de seu patrono, quando foi criada com o nome “Alexander von Humboldt-Stiftung für Naturforschung und Reisen”, ou seja, como uma instituição de fomento às viagens e às pesquisas dedicadas às Ciências Naturais. Extinta em 1923, no contexto da crise econômica pós-Primeira Guerra, foi refundada em 1925 para ser novamente fechada 20 anos depois, em 1945, com o colapso pós-Segunda Guerra. A AvH, assim, teve três inícios, sendo um braço do governo alemão para relações internacionais e parcerias acadêmicas.

A agenda com as grandes datas deste 2018 nos foi passada logo que chegamos: 1) Encontro dos Bolsistas em Regensburg, no mês de abril; 2) Encontro Anual da AvH em Berlim, em junho; 3) Viagem de estudos de duas semanas, pela Alemanha, em agosto.

O primeiro reuniu aproximadamente 300 bolsistas, convidados a apresentar suas pesquisas, metodologias e interesses. O segundo tinha o dobro de participantes, incluindo uns 20 “Nobelpreisträger” (vencedores do Prêmio Nobel), todos recepcionados no Schloss Bellevue (Palácio Bellevue) pelo Presidente da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier. Aproveitando o episódio, importante lembrar que o posto de “Bundespräsident” é eminentemente de representação, pois o poder efetivo é do(a) “Bundeskanzler(in)”, do(a) Chefe de Governo, do(a) Chanceller, ou seja, da (super) Frau Merkel.

Agora, a coisa incrível desses encontros é a quantidade e a qualidade das pessoas com as quais temos a oportunidade de conversar e conviver, mesmo que por poucas horas. Investigadores de excelência, oriundos de cerca de 140 países, com trabalhos sobre os mais diferentes temas e adotando estratégias metodológicas igualmente plurais.

No Encontro de Regensburg, apresentei um poster sobre a minha pesquisa, calcada no período de formação do pintor, gravador e ilustrador João Fahrion (Porto Alegre, RS, 1898–1970) na Alemanha, no início dos anos 1920. E, preciso comentar: a recepção foi ótima. As pessoas estavam francamente impressionadas com a qualidade da obra do artista e com o fato de ele ser praticamente desconhecido na Alemanha. Mas é com esse objetivo, também, que trabalhamos: para divulgar coisas bacanas.

Bem, eu investigo a trajetória e a obra desse artista há pelo menos 15 anos, quando iniciei meu trabalho sobre os “artistas ilustradores da antiga Livraria do Globo”, tema de meu Mestrado e Doutorado (PPGAV–UFGRS, 2002; 2007) e que resultou no livro A modernidade impressa, lançado em 2016. Na verdade, porém, posso dizer que Fahrion me acompanha desde quando eu tinha 8 anos de idade. E, não… eu não convivia com quaisquer obras dele, nem na casa dos meus pais, nem na casa de ninguém. O que me levou a conhecer Fahrion foi um livro ilustrado por ele: a edição de 1936 d’As aventuras do avião vermelho, do Erico Verissimo. Por caminhos tortos e maravilhosos, esse livro foi meu guia. Mas essa é uma outra história… O fato é que além de ter sido o mais prolífico dos artistas ilustradores da editora sulina, Fahrion foi professor de Desenho no antigo Instituto de Belas Artes (atual Instituto de Artes da UFRGS), bem como um dos mais prestigiados artistas no Rio Grande do Sul, entre as décadas de 1930–1960. Sua formação iniciou no final dos anos 1910, em ateliês em Porto Alegre, mas foi em Berlim, onde viveu entre 1920 e 1922, que ele constituiu sua base. Entre meus propósitos, aqui, está investigar as obras dos professores com os quais ele estudou e tentar reconstruir o meio artístico no qual viveu, imaginando, também, o que Fahrion pode ter visto em termos de exposições. Assim, embora meu vínculo na Alemanha seja com a Hochschule Hannover, localizada em Hannover, região central da Alemanha, vivo e pesquiso em Berlim, pois o meu “objeto” está aqui. Outra faceta admirável da Humboldt: o respeito à liberdade e às opções do pesquisador.

Caríssimos, eu poderia escrever-escrever-escrever sobre o Fahrion e sobre as coisas incríveis que “nos acontecem” (a mim e a ele), bem como entrar em detalhes da própria Humboldt, mas creio que por hoje é isso aí.

Volto em breve!

Paula