Mestre Lima Barreto,

Consinta que lhe mande, publicamente, esta carta de lou­vor ao seu último livro. Desacostumado a ver obra de mérito nos trabalhos literários que se têm publicado nesta década, faço exceção aos seus e aos de João do Rio, ambos muito diversos na maneira, mas os únicos que chamam a atenção dos estudiosos das Letras, nesta nossa terra de Santa Cruz.

A você conheci, há alguns anos, pelos catorze da minha idade, com o [Recordações do escrivão] Isaías Caminha, que, não sei como, me foi parar às mãos pudicas de seminarista. Este particular talvez não lhe interesse; é de importância, porém, para mim, porque você veio evoluindo na minha admiração, juntamente com as mi­nhas ideias, as quais, de acanhadas que eram pela constrição do catecismo, se foram, com as leituras, desvirtuando da batina para as seduções das calças, das saias e de tudo quanto maravilhoso encerra a liberdade de ser mau, aqui, no grande mun­do… De modo que você tem alguma responsabilidade no meu tresmalhamento do rebanho do Senhor, lá onde me que­riam “luz do mundo” e “sal da terra”, e onde, apesar do que supõe a perversidade humana, a gente goza da ingênua tranquilidade de crer, sem sobressaltos, nos mistérios líricos da outra vida cristã. Você há de rir de si consigo, lendo o que aí fica e talvez indague da ponta de sua botina o que pode haver de comum entre o meu chapéu de bico e a sua literatura.

Não se avance na pesquisa que logo aqui lhe passo a resposta. O padre-mestre Tadeu, homem de largas virtudes eclesiásticas e poucas considerações literárias, cujo trabalho no seminário era zelar pela leitura dos moços, tinha lançado sobre você um anátema feroz, com todas as formalidades canônicas do si quis dixessit[1] Bastou isto, para que eu logo avan­çasse no Isaías, com a mesma sede de pecar que, já no Paraíso, levara Eva à danação eterna. Pequei gulosamente. De plena consciência, sorvendo o pecado, com volúpias de noivo, como alguém que tivesse o diabo no coração. E eis aí por que, falando agora de Histórias e sonhos,[2] não me con­tive que não lhe dissesse essas coisas sem mérito.

Antes de mais nada, quero protestar contra a aproxima­ção que estão tentando fazer alguns inconsiderados da sua literatura com a de Machado de Assis. São dois estilos di­versos, duas tendências diversas, dois temperamentos profun­damente diversos. Ambos realizaram obras de beleza; qual a qual, seguindo rumo diferente, processos mais ou menos pes­soais, se bem que com larga escala pelas mesmas fontes do humour inglês e da ironia mordente e fina dos franceses, cujo mestre de todos os tempos é o indepassável Anatole, ainda que com isso rebente a alma de Voltaire e espouquem os manes do irmão da suave Henriette. Machado de Assis é o pessimista desapiedado, cuja maldade, maravilhosamente es­culpida, desce ao cúmulo de expressar-se, em todos os seus tipos, sob a forma sedutora de uma candidez que raia pela ingenuidade, mas que, realmente, se embebe no puro fel das suas revoltas íntimas, estuantes nas suas veias, onde o sangue mulato animava o gênio dum heleno sem parelha.

Era o observador de gabinete, que disseca lenta e mi­nuciosamente a alma, deduzindo uma ação de outra ação, como que os caracteres dos indivíduos se contivessem em fór­mulas matemáticas, de uma precisão infalível como as leis físicas. A Capitu, da primeira à última página do livro, vem sendo preparada para o desenlace, cuidadosamente, friamente, só para que pudesse dizer o Dom Casmurro que “ela menina estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca”.

Donde se vê que o mestre dos mestres, Machado de Assis, era genial e propositadamente perverso, sem olhos para a bondade humana, para o lado delicioso da vida, que ele enxergou sempre como um mal, não obstante a suavidade com que ela lhe correu, com um anjo que lhe soube “pôr um mundo num recanto” e cuja bondade deveria ter temperado a sua tendência constitucional para a análise das chagas hu­manas. Capitu, Brás Cubas e Quincas Borba são figuras de exceção no cenário da vida. O mestre pintou-as com a delícia de uma forma impecável, vazada em linguagem de correção clássica, mas nem sempre consoante com a verdade da exis­tência humana.

Quando se analisa, tem-se a impressão do artificial, tal é a perfeição e a lógica com que eles se apresentam. A vida é alguma coisa de mais desordenado, de menos matemático, cheia de imprevistos, em que as situações modificam os tem­peramentos, revolvem os caracteres, alteram as feições indivi­duais, por mais definitivas que elas pareçam. O menino nem sempre denuncia o homem, este quase nunca é um desenvolvimento lógico daquele. Isto porque, no mundo moral, afora as tendências mórbidas drenadas no sangue de diversas gerações, o que predomina é o “momento”. É o estado psi­cológico “atual”, que a sabedoria popular consagrou no aforismo “a ocasião faz o ladrão”. É no que em você, meu pre­zado mestre, difere, com superioridade do Machado grandioso. As suas criações trazem todas as lacunas da sua vida, refletem a sua personalidade. Os seus tipos são variáveis, incertos, hu­manos, ilógicos, e traduzem, com perfeição, o caleidoscópio da existência, rebelde a leis, insubmissa a traçados, indo e vindo à mercê dos fatos, como estes galos de torre de igreja, móveis com o sopro dos ventos de todas as direções.

Machado punha a alma no torneio da frase, que ele que­ria sempre fina e burilada. Nem uma vez dormita. É uma ilha de Ogígia.[3] Perfeito a matar de aborrecimentos. Você não. A linguagem discorre-lhe, sem os tropeços do precioso: à vontade da pena, sem medida nem retoques, ainda que, de ordinário, muito de bem com as regras essenciais da gra­mática.

A ironia de Machado de Assis é travosa; provoca esses sorrisos em que os músculos da face se contraem numa ex­pressão indecisa que mais tem de amargura. Ele expõe a chaga purulenta, elegante e risonho, sem compadecimentos da dor alheia, tal como um médico, num anfiteatro de lições, apresenta aos seus discípulos todas as deformidades dos seus doentes, que lhe não inspiram nenhuma piedade. Você vive e vibra com os seus personagens, porque eles são filhos da sua alma, rebolada como a deles nos descalabros da existên­cia, e experiente das misérias que os afligem. Em Machado de Assis, não há nada das desilusões de Brás Cubas, dos desequilíbrios de Quincas Borba, das excentricidades de Dom Casmurro. Ele viveu sempre bem e mais ou menos cercado de amigos, que lhe foram fiéis e, por isso, não lhe deram motivos dos íntimos azedumes que o devoravam.

E assim, da análise que lhe fiz, a jeitos de Brunetière, vejo que o Machado foi um diletante da maldade, inqui­nado de Sterne, Swift e mais mangadores da vida, a qual lhes foi sempre, no entanto, relativamente serena e boa. Vejo, portanto, que você não se lhe pode comparar, a menos no ironizar, o que, aliás, ambos fazem por maneiras diversas. Prefiro, meu caro Lima, achá-lo original. Justifico a sua re­volta contra homens e coisas, desde que ela nasça da maneira por que você achou melhor viver, por vontade ou fatalidade biológica.

Quero dizer-lhe, agora, que vou terminar, que o Histórias e sonhos não desmerece dos seus outros grandes trabalhos; antes, pelo contrário, reafirma-o na admiração dos que o en­tendem. Perdoe o tempo que lhe tomei às suas meditações, feitas na aventura dos cafés.

Digo-lhe do meu espírito o que o Horácio querido dizia da sua casa: Non ebur, neque aureum mea renidet in domo lacunar.[4] Mas, no seu desataviado, há sempre um cantinho para o gosto da beleza, que tão bem você cultiva.

Creia na admiração do

Austregésilo de Athayde

Lima Barreto. Correspondência: ativa e passiva. São Paulo: Brasiliense, 1956, pp. 251-256.

[1] N.S.: “se alguém tivesse dito…”.
[2] N.S.: Histórias e sonhos é uma coletânea de contos de Lima Barreto publicada em 1920.
[3] N.S.: Ogígia é uma ilha na Odisseia, de Homero. Habitada pela ninfa Calipso, ali ela reteve Ulisses  durante sete anos e tudo fez para que o herói aceitasse a imortalidade e ficasse com ela, sem o conseguir.
[4] N.S.: “em minha casa, nem o ouro nem o marfim do teto resplandecem”.