Rio [de Janeiro], 16 de dezembro de 1967

Otto, meu caro, a situação que você me descreve é calamitosa: eu sou popular em Portugal! Você vê que não tem jeito, não; a gente acaba tendo o castigo que merece. Eu, por exemplo, que me venho furtando à popularidade (não por virtude, mas por timidez que, pouco a pouco, vai-se tornando doentia), acabo de receber um golpe. Essa do Vão Gôgo Boite,[1] então, é inacreditável – eu tinha ouvido falar, mas pensava que era brincadeira. Contudo, não importa. Isto é, já não importa. Tava tudo errado mesmo, Otto, mas quando eu fui apanhar a borracha era tarde. Alguém me disse, com malícia, que você era quem chovia aqui no Rio e levou as chuvas daqui aí pra Lisboa. Mas logo a pessoa teve que engolir o que disse, inclusive a parte líquida, porque aqui o dilúvio se tornou constante neste início de verão. Sol, quase nenhum. Tempo baço, sem ânimo, nada dos verões doutrora.

Que esta te encontre, porém, no mais sadio dos mais humores. Pois essa, sei, é tua fonte de brilho literário e de alegria de viver. Os portugueses já te entenderam?

Aqui a turma em geral vai bem. Vejo-os pouco, ou nada, mas sei deles. Fernando [Sabino], agora, anda de avião para baixo e para cima, vendendo a si próprio e aos amigos na Editora do Autor (Sabiá). Vai acabar numa figueira, o judas, assessorado pelo Rubem Braga. Noutro dia vi os dois fazendo a féria de uma noite de autógrafos, a qual dava exatamente 3300 dólares. (Veja a atualização, não só no tipo da moeda, como no valor fiduciário, dos 33 dinheiros). Rubem, entre um gole e outro, rosna lá de cima do seu terraço uma maldição bíblica. Paulinho [Mendes Campos] erudita na Manchete. E Hélio [Pellegrino] inflama. Quando há uma nesga de sol, as garotas passam na rua e nos amarguram a todos. A mais simples garota nos amargura a todos, com uma simples não olhada. (Vira. Você não, o papel!) Vou parar aqui, já que o papel acabou. Um dia destes te escrevo mais e te digo mais. Só posso te dizer (repetir) a minha velha história do homem (otimista) que se atirou do décimo andar e, ao passar pelo oitavo, murmurou: “Bom, até aqui, tudo bem!” Pois não tinha razão? Boa luz, ar fresco, boa paisagem, ainda faltavam oito andares, pra que se aborrecer e amargurar antecipadamente?

E quando ele foi passando pelo primeiro andar e o chão foi se aproximando, de novo ele refletiu: “Bem, se não me aconteceu nada nesses nove andares, não é nesse pedacinho que falta que eu vou me machucar”.

Enfim, meu caro Otto, há que ser otimista, nem que seja à porrada. Beijos às crianças, sobretudo as do sexo feminino, e aí por volta dos 18 anos de idade. Que Portugal te dê o que você merece, isto é, carinho e bons tratos gerais, ou de nada vale esse país. Dê meu grande abraço à Helena, minha mineira preferida. Que eu possa vê-lo dentro em breve.

Do velho amigo,

Millôr

Arquivo Otto Lara Resende / Acervo IMS.

[1] N.S.: Casa noturna em Lisboa que tinha como nome a personagem criada por Millôr na revista A Cigarra, em 1939. Vão Gôgo ganhou autonomia e dali partiu para O Cruzeiro, onde chegou a assinar dez seções por semana. Só em 1962 o pseudônimo daria lugar ao verdadeiro nome do autor.