Rio de Janeiro, 18 de abril de 1959

Meu excelente Otto,

Escrevo-lhe, depois do almoço, em plena tarde de verão, já que esse dadivoso calor carioca não mais se desprega da pele da cidade. Grudou-se a ela, a nós todos, e nos suga pachorrentamente, gruda e gordíssima sanguessuga que nos espreme os poros, os ossos, os poços.

Acabo de passar os olhos no suplemento literário do Jornal do Brasil, trincheira dos concretistas locais, e por aí fico sabendo o que é um poema transsintático – morou?[1] O poema transsintático, meu velho Otto, que vais fazer anos no próximo 1º de maio, o poema transsintático é, antes de mais nada, um forte. Como são fortes o sertanejo de Euclides da Cunha e as razões da juventude que nós metodicamente estamos a perder. Claro, há que haver compensações, como essa sua, de ter filhos, e como essa minha, de também tê-los, e de nos apegarmos a eles, porque já podemos ter filhos, porque já conquistamos a perspectiva paterna, aquela célebre dimensão que falta aos poemas transsintáticos e outros produtos das mais recentes gerações.

Sei que você me entende, velho Otto, sei que a sua linguagem não é transsintática, como a dos jovens muito jovens – jovens somos nós, porra! – sei que, à medida que o tempo passa, perdemos um pouco o pudor de sofrer reconhecendo que sofremos, e nos pomos humildes como pequenas mulas carregadas de fardos, diante do crepúsculo, e nós podemos dizer, bufando através de nossas negras e úmidas narinas de burros – nascer dói, viver desonestiza e acabrunha, morrer é uma fotografia na parede – mas como… etc. etc. Isto me parece ser uma das fundamentais conquistas da maturidade; atingir a linguagem bíblica, onde estão expressos todos os problemas do mundo, presentes, passados e futuros, poder sofrer com dignidade, maestria e decência, poder comer quando se tem que comer, dormir quando é hora para isso, copular às quartas e sextas-feiras, tal seja o caso, e – ao fim, morrer, mesmo que seja a um dia assim, com um sol assim etc.[2] Acredito que todos, sem exceção, passamos todos os anos de nossa primeira e segunda juventude – isto é – até os trinta anos, rebelados contra a vida e contra o fato de termos nascido, raivando espumas contra o inexorável fado que nos arrojou ao mundo, sonhando o Éden, possessos por não tê-lo à mão, enraivecidos contra pai, mãe e irmãos, elaborando esquemas de reformas que nos darão de volta o Jardim das Delícias, e assim por diante. Marx, o barbudo, em última análise não passou e não passa de um eterno adolescente, safado da vida por ter sido posto ante o espetáculo do mundo, ávido por modelá-lo à imagem e semelhança do seu ressentimento – que sei eu? Está claro que, com isso, não vamos negar os movimentos progressivos da espécie, as lutas dos homens – e das mulheres! por um mundo melhor etc. etc. etc. Claro, o homem tem que se mexer, e progredir, ou regredir, ou morder, ou cuspir, ou saltar, ou cantar, ou morrer – pouco importa. O importante é que ele se mexa, e caminhe. Apenas, meu velho e caro Otto, que esse movimento não seja o espasmo de um possesso, nem a baba do criminoso, nem a saliva da hidrofobia, mas uma aceitação – a-c-e-i-t-a-ç-ã-o – da condição humana, um assumir o exílio que é nascer, um estar pregado à cruz sem caretas sentimentais e esgares para infundir piedade, uma crucifixão viril, com gemidos de dor, sem dúvida, mas sem maiores ressentimentos. A aventura humana é esta, senhores, les jeux sont faits, [3] não há muito o que reclamar, se bem que, às vezes, haja tudo por reclamar.

Não sei se estou sendo claro com toda esta arenga lírico-filosófica, mas sei que você me entende. Amadurecer é perder o orgulho, meu caro Otto. E perder o orgulho é poder ser pai. Com furiosa doçura, minuciosa humildade, de chinelos, para não acordar o vizinho ou o filho que dorme, no quarto ao lado. Amadurecer – isto é, fazer 37 anos dignos, como você os vai fazer – é poder falar aos seus filhos do seu padrinho Jackson de Figueiredo, que morreu quando você agora nasce, fazendo anos. Amadurecer, por fim, é descobrir a gratuidade do mundo, a independência dele – vide carta-prefácio ao livro O encontro marcado, do festejado escritor Fernando Sabino – é poder dizer a alguém, a um filho, por exemplo: “Veja meu filho, isto aqui é uma pera, é uma pera, é uma rosa, é uma pera, é uma pera”.[4] Ah! velho Habacuc, me abraço a você e choro doce, pelos teus 37 anos, por tudo o que você sofreu até hoje, por tuas alegrias e perplexidades, por teus remorsos, pela tua asma, pela tua tosse, pelos teus ossos e tendões, pelos teus camelos, pelas tuas novilhas, pela tua tenda árabe de trabalho, pela tua família, pelo teu aparelho de barbear, pelo teu pente, pelo Nicolai Fikoff[5] que conheces e de que gostas e também eu gosto! – por tudo isso te saúdo, e te estendo minha mão através dos mares, e te dou um comovido e viril aperto de mão. E você o sabe – se choro por ti, choro por mim, pelos meus 37 (cinco) anos, por tudo isso é que é a minha, a tua, a nossa vida, por tudo choro, comovido e feliz, porque a vida é assim mesmo, porque a pera é uma pera, é uma pera, é uma pera, porque você é bom e digno, porque você está de pé, vivendo de pé, porque você tem um romance já escrito de que eu – tenho certeza – vou gostar muitíssimo, porque você deverá, na noite do seu “níver”, estar tomando vinho com o Fernando Sabino, ao pé da lareira familiar – o fogo do lar – por tudo isso, velho Habacuc, eu te saúdo, com saudade e carinho, com carinho e saudade que só podem sentir os maduros, os simples de coração, os bíblicos, os mendigos aos quais está fechado o acesso ao poema transsintático, mas que são capazes de outros acessos, como este que acabo de ter, de pura e cálida amizade por você. Um abraço ao Sabino, ao movimentado, ao lépido Sabino, um abraço para a Ana Beatriz, um abraço para a comadre Helena, uma pera para cada um de seus filhos, um abraço para o Sebastião e para o Nicolai Fikoff – não se esqueça de lho transmitir. Me escreva, sua carta foi esplêndida, me escreva sem demora, que responderei logo.

Seu

Hélio.

Acervo Otto Lara Resende/IMS


[1] N.S.: Hélio Pellegrino se refere ao artigo “O poema transsintático”, publicado no “Suplemento Dominical” por ocasião da I Exposição Neoconcreta realizada no mam-Rio.

[2] N.S.: Alusão ao poema “In extremis”, de Olavo Bilac, que começa com os versos “Nunca morrer assim! Nunca morrer num dia/Assim! de um sol assim!”.

[3] N.S.: Expressão francesa que significa “os dados estão lançados”.

[4] N.S.: Referência ao famoso verso do poema “Sacred Emily”, de Gertrude Stein: “Rose is a rose is a rose is a rose”.

[5] N.S.: Nicolai Fikoff foi arquiteto responsável por diversos projetos, dentre os quais a Embaixada da Bélgica em Brasília e a casa de Otto Lara Resende, de quem era compadre.