São Paulo, 9 de setembro de 1941

Erico Verissimo, bons dias!

Recebi o seu bilhete anunciando-me a viagem. E então, divertiu-se muito? Que homem feliz! Juro que chego a invejá-lo até!

As minhas viagens – coitadinhas! – são todas feitas por aqui mesmo, em redor do Estado de São Paulo. Meu pai tinha me prometido uma viagem para o Norte, caso eu fosse aprovada em direito romano; mas direito romano me reprovou… Vê? Tudo conspira contra. É melhor não pensar mais em mudar de ambientes, de costumes…

Um dia a gente morre, vai pro céu; e Deus dá então pra gente um par de asas pra conhecer o mundo inteiro! Por enquanto, existe para mim o Estado de São Paulo.

Sei que existe também Porto Alegre, porque o escritor Erico Verissimo faz livros aí. E bonitos livros. Li Saga[1] e continuo gostando mais do distante Música ao longe.[2] Achei Saga um pouco postiço. O senhor já esteve no front?

Erico Verissimo, vou lhe contar um segredo. Promete não divulgar? Então, ouça: tenho um livro pronto! Sim senhor! Um livro com catorze contos! Dei-o a um editor, mas o diabo do homem, antes de ler os originais, cismou que a minha cara devia ser muito mais interessante do que os contos todos e por isso decidiu botar o meu retrato no livro. Com bons modos, disse-lhe que achava isso muito ridículo. Insistiu. Fiquei zangada; minha cara nada tem a ver com a obra. E tem, não tem, aparece, não aparece… Conclusão: sugeri que botasse o retrato da avó dele. Nesse ponto, resolveu não falar mais nisso. Mas aí eu já estava de mau gênio e exigi a papelada de volta. Agora estou com tudo aqui na gaveta.

Descansa, Erico Verissimo, não lhe falarei na Editora Globo[3] porque já estou ciente de que ela não edita contos. Caso contrário, há muito já teria mandado, por avião, minhas 120 páginas. Mas o senhor deve conhecer editores, não conhece?

Seria muito trabalho perguntar a esses se não pensaram nunca em publicar livro de gente desconhecida? Se não pensarem, de jeito algum, nesse horror, então o senhor diz que são contos seus, só pra eles se interessarem e pedirem pra ler o original. Depois que tiverem lido, daí o senhor diz que estava brincando, que o original é de uma amiga principiante.

E como pode suceder o fato de devolverem tudo no mesmo instante, pode também suceder o contrário…

A não ser dentro da Globo, conhece algum editor? Se não conhecer nenhum, não faz mal, a gente arranja por aqui mesmo. Se não arranjar nem por aqui mesmo, também não faz mal… Um dia, a gente morre e Deus, que é muito compreensivo, dá, além das asas, uma tipografia. Quero que o senhor leia esse meu conto que faz parte do livro. É um dos catorze… E agora me despeço.

Estou muito contente por ter conversado consigo; é verdade que falei o tempo todo, mas as minhas conversas são cômodas, porque não me zango, mesmo quando não há resposta… Muito cordialmente,

Lygia Fagundes

Arquivo Erico Verissimo / Acervo IMS.

[1] N.S.: Esse romance de Erico Verissimo versa sobre a guerra civil espanhola. Publicado em 1940, foi recebido com reservas pela crítica.
[2] N.S.: Romance publicado em 1936 e vencedor do Prêmio de Romance Machado de Assis.
[3] N.S.: Editora Globo, em Porto Alegre, onde Erico Verissimo trabalhava e para a qual traduziu muitas obras.