São Paulo, Reis [6 de janeiro] de 1942

Moacir,

Deixei de responder mais cedo à sua última carta, muito delibe­radamente. Desta vez o “missivista exemplar” estava carecendo de não escrever a certos amigos mais certos. Se escrevesse, mentia. Vo­cês já estão arquissabidos de que eu estava no fim de um período de desequilíbrio, e eu com vergonha de feitas as promessas e as “ju­ras” de me ajustar e ficar bonzinho, continuar na mesma crise e nas mesmas queixas. De forma que temi, em consciência, escrevendo a certos amigos mais sabidos de mim, a vaidade, a discrição, nem sei, me fazer mentir. Ou não dizer, que também é uma forma de mentira. Então me desmilingui com outros, este derramado coração mo­le. Principalmente com rapazes muito novos, gentinha me escreven­do e a que, positivamente, uma certa moralidade messiânica, muito minha mesmo, me permitia não me contar senão naquilo em que eu podia ser lição, e não um espírito rebaixado e sem forças bonitas — que é o que eu estava. Espécie de sacrifício muito cristão, “este é o meu corpo, este é o meu sangue, alimentai-vos”, que, se não me engano, me fez muito bem.

Porque a verdade, seu Moacir, é que por princípios de novem­bro, por causa da obrigação de me reler com a encomenda de um livro de crônicas, isso me fez chegar ao auge do desespero de mim. Então é que perdi mesmo o controle, mas completamente. Fiz tais desperdícios, tamanhos escândalos, completamente inconsequente e leviano. Os amigos se assombraram. Houve conclave, reunião de mi­nistros, mulheres protetoras que não dormiam pensando em mim e sacudindo a inquietação de seus maridos, despacharam embaixado­res bem representativos: como coisa de coração foi bonito, teve fra­ses muito sérias e muito lindas, há gente boa no mundo, não posso me queixar: sou benquerido. Ainda brinquei uma derradeira vez de ser filho da puta e o fui tamanhamente que dessa vez me horrorizei. Ou um tiro na cabeça, em que nem penso, ou fazenda. Fugi pra fa­zenda. Agora eu estava dentro comigo e foram 18 dias de crise gradativamente decrescente no espírito. Quando voltei, não estava outro, estava apenas em mim e com uma reserva de, nem sei bem de quê, se de tristeza calma, se de decisão melancólica, nem sei. Fal­tavam 15 dias pro ano novo principiar. Passei esses 15 dias treinando experiências morais. Foi bonito também e reprincipiei acreditando na grandeza humana. Agora sim, sei que sarei. Estou que é uma gostosura.

Vou passar talvez ainda todo este mês em estudos e releituras de notas já tomadas sobre o romance,[1] e é certo que vou retomar lo­go a escritura dele. Gostei do nosso encontro de ideias, expostas na sua carta, a respeito do romance. Só desejei é você não estar em São Paulo, que lhe daria a ler a parte já escrita. Desque iniciei o li­vro já fora com as decisões que você comenta. Outro estilo mais “ele­vado” como o assunto requer, uma linguagem menos intencional, muito mais direta, porque agora a “intenção” está no próprio as­sunto. E tudo o resto deriva do assunto. O que não quer dizer, está claro, que eu abandone certas convicções de expressão e certos, vá lá! cacoetes que me fazem. Mas, exatamente como você diz, empre­gados naquela necessidade com que aparecem nos meus escritos mais atuais e mais castigados. Vamos a ver…

Não me iludo também, não pense. Sei, sem vaidade, que atingi um amadurecimento muito harmonioso… de mim. “De mim” quer dizer de um artista temporário, com uma incapacidade estranha de se realizar enquanto promete. Se escrever o Café e chegar à conclu­são de publicá-lo, isto é, à conclusão de quase todos os meus livros, o “dei tudo quanto posso”, a realidade da coisa publicada dirá, co­mo sempre, que ainda não é o livro que é lícito esperar de mim, do que meus escritos prometem. Confesso isto sem a menor melanco­lia, até gozando. Tenho suficiente consciência de mim e (fora das crises) uma bruta de saúde mental, que impede em mim qualquer aspiração a ser mais do que realmente sou. Nisto eu me sinto prodi­giosamente liberto e creio não ser possível encontrar em mim o me­nor gesto, a menor aparência de rivalidade com ninguém. Nem o menor despeito. Meu Deus! como sei gostar dos outros, nem me em­pobrece a grandeza alheia…

Este ano vai ser um ano importantíssimo de trabalho pessoal pra mim. Toco pra diante o Café. Tapearei o mais possível o Serviço do Patrimônio [Histórico e Artístico Nacional] quanto a horas de trabalho, fingindo fazer pesquisas que resultarão infrutíferas. Mas a monografia sobre o padre Jesuíno, pintor, vai ficar bem-feita. E farei pesquisas para um curso so­bre a história da poesia popular brasileira, que já tomei o encargo de professar em 1943, na Faculdade de Sociologia e Política. Já te­nho muita pesquisa feita, o trabalho me apaixona e vai ser de con­cepção muito original. No mais, alguns artigos… discrepantes, pra me botar sempre de sobreaviso contra a doença fina do medalhão. Puxa, seu Moacir, se tem mesmo alguma luta heroica na minha vi­da, é essa contra o medalhão. Como me namoram…

Gostei muito de você gostar da Gabriela Mistral, adoro ela. Que encanto impregnante vai aconchegando a gente enquanto ela fala, você reparou? Ela é uma espécie daquele chinês sábio, de Malraux. Com mais humanidade.

E não me aplauda, por enquanto. Vamos esperar até julho. Em julho lhe direi que estou mesmo fazendo quanto me prometi pra 1942. Acho que a guerra, sinto, que ela vai acabar este ano. Tudo o que a gente deseja não virá, mas é preciso a gente se prevenir contra de­silusões bestas. Muita coisa vai se modificar pra melhor. Depois vi­rá uma terceira imensa guerra. Depois já muitos ficarão satisfeitos. Eu não. Eu nunca!… Estou cada vez pendendo mais pro anarquis­mo. Outro dia, escrevinhando um artigo, descobri meio assustado que a liberdade não é um prêmio, é uma sanção. Será que alguém já falou isso? Não me lembro. Estou lindíssimo. Nada ascético. Sim­plesmente lindo.

Mário

Moacir Werneck de Castro. Mário de Andrade: exílio no Rio. Rio de Janeiro: Rocco, 1989, pp. 186-188.

[1] N.S.: Mário refere-se ao romance Café, no qual começou a trabalhar desde o final da década de 1920 e nunca o terminou.