[Rio de Janeiro], 27 de março de 1970

Um dia o dr. Antônio do Passo[1] apareceu na minha casa e me convidou para ser treinador da Seleção Brasileira. Não me falou em contrato, em dinheiro, em nada. Só perguntou se eu queria ser o treinador da Seleção. Eu disse a ele:

– Isso é uma sondagem ou um convite?

– É um convite.

– Topo.

Eu disse à imprensa que já tinha sido convidado três vezes. Foi mentira: fui convidado cinco vezes, em 1958, 1966, 1967, 1968, 1969. Aceitei. Aceitei, porque achava que daria uma dimensão maior à luta que sempre travei na imprensa. Quem quiser que procure: são nove anos de artigos assinados no jornal Última hora, do Rio de Janeiro.

Defendo o jogador

Entrei nessa para defender o nosso patrimônio mais precioso: o jogador de futebol. Não admito, repilo com a maior violência, até de arma em punho, que um jogador brasileiro seja atingido. Ao fazer isso, estou certo de que, antes de mais nada, defendo o meu país.

Houve inveja, ciúmes, calúnia. Tudo isso era secundário. Diziam-me todos os dias os dirigentes: “Ponha a imprensa daqui para fora”. Eu dizia não. O diálogo com a imprensa é importante, porque, mesmo que mintam, que deturpem, nós estaremos colocando nosso país mais em cima, mais alto. Por compreender o papel da imprensa, abri as portas da concentração, das informações. Não houve nenhum segredo, nenhum mistério.

Quando entrei na seleção, não me fizeram injunções. Todos os brasileiros têm o seu time, eu tinha o meu, como brasileiro. Escalei o meu time. Então sofri as maiores injunções que jamais alguma pessoa possa ter sofrido. Mas meu time era meu time. Fui para as eliminatórias, lutei. Entre os dezesseis países classificados para disputar a Copa, o Brasil foi o que conseguiu a classificação mais brilhante, elogiada por toda a imprensa estrangeira.

Tenho em meu poder as declarações dos treinadores de todos os países, que passaram a respeitar o treinador brasileiro, que agora pode manter com eles um diálogo mano a mano. Por isso, Alf Ramsey, técnico da Inglaterra, dizia:

– Não gosto de enfrentar o João Saldanha. Ele tem uma agilidade mental fora do comum.

Não, eu não tenho agilidade mental fora do comum. Eu apenas defendo a verdade.

Pelé é um ingênuo

Vou tentar dar algumas explicações do porquê da minha demissão. Tenho relatórios médicos do Pelé que vêm desde 1960. Vejam isto: “No ano passado, depois de examiná-lo três vezes em seis meses, para jogar na Seleção, o médico Hilton Gosling concluiu que Pelé estava sob séria ameaça de um colapso renal (uremia), que bem podia decorrer do grande esforço a que vinha sendo sujeito, fazendo em média três jogos por semana. O Santos entregava Pelé ao selecionado brasileiro nas seguintes condições físicas: tornozelo direito inflamado e recém-saído do gesso com tratamento incompleto; frieiras e calos infectados em quase todos os dedos dos pés; contusão na planta do pé direito, que mal lhe permitia pisar no chão. Pelé é o jogador mais sacrificado do futebol brasileiro, o jogador mais explorado.

Lídio, um traidor

Imprensei o médico e disse que notara algum problema com Pelé.

– Quero um exame sério – disse. O médico respondeu:

– Que espécie de exames?

– Quero um exame de campo visual, que seja feito na Aeronáutica. O mesmo exame que os pilotos são obrigados a fazer.

Então o dr. Lídio Toledo me confessou que Pelé sofria de miopia. Eu jamais revelei esse problema. E lamento que dr. Lídio – informante de um jornal do Rio – tenha revelado isso. Aliás, o dr. Lídio cometeu a indignidade de informar a esse jornal que seriam cortados da Seleção os jogadores Scala, Toninho e Zé Maria. E eu soube, dos jogadores que iam ser cortados, por esse jornal. Eu, o técnico.

Pelé paga tudo

Mas Pelé tem de jogar a qualquer preço. Quando eu quis tirá-lo, veio todo mundo em cima de mim.

– João – disse um diretor da Seleção –, se o Pelé sair o patrocinador não nos paga mais.

– Mas eu não tenho nada com patrocinador, sou apenas um treinador de futebol.

– Não, João, não faça isso, senão não vamos ter mais dinheiro.

 O Caso Zé Maria

 A coisa mais pusilânime, ministro Jarbas Passarinho, o senhor que está interessado em saber o que há no futebol, a coisa mais cruel, mais imunda que já vi foi com o jogador Zé Maria. Esse rapaz tem um mal congênito que não é importante: má formação da última costela. O dr. Lídio Toledo quis barrá-lo. Depois da eliminatória, afirmou que Zé Maria não podia jogar duas semanas. Disse que ele tem uma hérnia de disco, que não foi comprovada pelos neurologistas.

– Então – sugeri – procure o médico da Portuguesa de Desportos, leve suas radiografias, para fazerem a operação.

Mas Zé Maria, homem humilde, filho de gente humilde, que ganha uma porcaria de ordenado, não foi tratado. No meio disso, surgiu o Corinthians Paulista interessado em Zé Maria. O dr. Lídio Toledo foi correndo e avisou o Corinthians: Zé Maria não podia jogar. Ele disse que Zé Maria era portador de um mal. Achei isso uma canalhice.

O jogo das viagens

O senhor sabia, senhor ministro, como são tiradas as passagens para as viagens da Seleção? Quando fomos fazer a viagem para as eliminatórias, eu advertia aos homens que os jogadores gaúchos poderiam ter uma passagem assim: Porto Alegre-Rio-Bogotá -Caracas-Assunção-Rio-São Paulo. O senhor sabe o que aconteceu? Tiraram todas as passagens a partir do Rio e voltando para o Rio. Tem mais coisa, senhor ministro, que eu não posso esquecer. Por favor, faça uma lei que proíba a qualquer time jogar mais de 52 partidas por ano.

Derrotismo, não

Não pensem que estou fazendo uma campanha de derrotismo. Não. A minha luta é outra. Vamos dar apoio à Seleção, mas vamos livrar a Seleção da sujeira. Vamos tirar o pânico dos jogadores brasileiros. Eles não podem ficar submetidos a injunções e interesses escusos, aos interesses comerciais de alguns e à inveja e pusilanimidade de outros.

João Saldanha


Revista Placar nº2, março de 1970

[1] N.S.: Ex-diretor de futebol da Confederação Brasileira de Desportos, a CBD.