Ilmo. Senhor
General José Bretas Cupertino
MD Chefe do Departamento de Polícia Federal

O Teatro de Arena de São Paulo sempre se caracterizou, nestes últimos quinze anos, pelo constante trabalho de pesquisa em todos os setores da arte teatral. Foram notáveis suas contribuições no terreno da interpretação, da encenação e sobretudo da dramaturgia – muitos dos mais prestigiosos nomes da nossa cena moderna encontraram no Teatro de Arena o apoio necessário para seus primeiros passos. Igualmente muitas formas atuais de se fazer teatro foram primeiramente testadas e desenvolvidas por aquele elenco.

Depois de tantos anos de renovação contínua, decidiu-se o Teatro de Arena a inventariar todas as atuais tendências da nossa arte, principalmente no nosso estado de São Paulo. E, para isso, convidou todas as mais prestigiosas figuras de teatro, artes plásticas, fotografia, música e cinema para que apresentassem suas opiniões, livremente, sobre qualquer aspecto do Brasil de hoje. Este espetáculo, tão democraticamente concebido, chama-se “1ª Feira Paulista de Opinião: Que pensa você do Brasil de hoje?” e conta já com a participação de mais de 70 artistas radicados em São Paulo. Entre eles, pintores como Clóvis Graciano, Samson Flexor, Aldemir Martins, Nelson Leirner, Flávio Império, Marcello Nitsche, Maria Bonomi, Aldo Bonadei, Flávio de Carvalho, Mário Gruber, Rebolo, e muitos outros; compositores como Chico Buarque de Hollanda, Edu Lobo, Ary Toledo, Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, Caetano Veloso, Gilberto Gil; cineastas como Sérgio Muniz, Mauricio Capovilla, Luís Sérgio Person; fotógrafos como Dulce Carneiro, Derly Marques; e, além destes e de muitos outros, conta sobretudo com a presença dos seis mais importantes dramaturgos paulistas do momento. Queremos lembrar o trabalho de um Jorge Andrade que vem paulatinamente fazendo o levantamento estético da vida no interior paulista nas últimas décadas; de Gianfrancesco Guarnieri, um dos mais importantes dramaturgos urbanos que, neste espetáculo, fez um mural da vida citadina, analisando fenômenos modernos como o hippie; Bráulio Pedroso, autor de um dos quadros de espetáculo do Arena baseado num conto de sua autoria, anteriormente publicado no Estado de S. Paulo; Lauro César Muniz que revive atualmente o abandonado estilo da comédia de costumes; Plínio Marcos, que neste último ano despontou como o mais fecundo dos escritores brasileiros, tendo nada menos de seis textos montados, e que recebeu por isso mesmo diversos prêmios, entre os quais o Prêmio Molière, outorgado, simultaneamente no Rio e em São Paulo, pela totalidade dos críticos teatrais em exercício; e, finalmente, Augusto Boal, também detentor de Prêmio Molière pela criação de uma nova teoria teatral, denominada “Sistema Coringa”[1] que é aplicada ao texto com o qual contribui para a 1ª Feira e que se baseia integralmente em notícias publicadas pela nossa imprensa, e, portanto, já de domínio público.

A necessidade imperiosa deste inventário, desta soma de experiência e de pesquisas é por demais evidente. Assim, o Conselho Artístico e Literário da Comissão Estadual de Teatro do Conselho Estadual de Cultura de São Paulo, órgão por mim presidido, e integrado por ilustres personalidades das letras paulistas, homens de comprovada capacidade intelectual e de ilibada probidade moral, como Anatol Rosenfeld, Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi, Alberto D’Aversa (professores universitários, críticos, diretores etc.), deliberou considerar a 1ª Feira Paulista de Opinião digna de representar a arte paulista, dentro dos quadros de “Teatro e Cultura”, plano oficial do Governo Abreu Sodré. Julgou mais ainda esta Comissão, e julgo eu própria, ser absolutamente indispensável que este espetáculo não sofra restrição de espécie alguma (cartas, por exemplo) dado que a sua verdadeira proposta é a de, e dentro dos mais elevados padrões de democracia, assegurar a todos os artistas convidados, a inteira liberdade de manifestar livremente seus pensamentos. É evidente que uma Feira de Opinião só terá validade se toda e qualquer opinião puder ser aí livremente exibida: o corte, por mais simples que seja, mutilará o caráter democrático da mostra.

Não apenas nós, da Comissão Estadual de Teatro, bem como os intelectuais de São Paulo assim pensamos, como também outro não terá sido o espírito de legislador da nossa Carta Magna ao assegurar a todos o direito de opinião e de expressão, que aliás é igualmente consagrada pela Carta Magna da Humanidade, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, promulgada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, e assinada também pelo representante do Brasil, a qual declara no seu capítulo 19: “Todo homem tem direito à liberdade de opinião e de expressão; esse direito de, sem interferências, ter opiniões e procurar receber e transmitir informações e ideias, por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.

Bem sabemos, igualmente, que a nossa Constituição prevê a censura às diversões públicas. No entanto, o atual conjunto de obras enfeixado na 1ª Feira de muito supera as limitações da expressão “Diversões Públicas”[2] alcançando um alto sentido didático pela exposição da realidade nacional através das mais diferentes perspectivas; pode-se contra-argumentar que talvez não tenham sido sempre todos os autores fiéis intérpretes da mesma realidade, isto é, dentro de uma Feira o próprio autor torna-se em testemunha da realidade e parte dessa mesma realidade. O caráter democrático da mostra é assegurado pela presença de representantes de todas as tendências estéticas da nossa arte: a exclusão de qualquer das testemunhas falsificará o resultado final.

Senhor General: a 1ª Feira está com data marcada para a estreia e, por essa razão, o Teatro de Arena apressou-se a fazer a entrega do texto à Censura Federal. Até o momento nenhuma notícia oficial foi publicada; porém, através de contatos telefônicos com Brasília, pôde aquele teatro ser informado de que a liberação total de espetáculo não é líquida e certa, como tudo fazia presumir. Assim, em nome do Conselho Literário que presido, em nome da Comissão Estadual de Teatro que presido, em nome dos 70 artistas integrantes da mostra de arte, em nome, estou certa, de todos os intelectuais paulistas e ainda em nome da arte e da cultura de São Paulo, dirijo-me a V.Ex.ª a fim de solicitar seja o texto da 1ª Feira Paulista de Opinião integralmente liberado, sem a exclusão de qualquer das peças e canções que a integram, e sem a mutilação de qualquer de suas partes.

Estou certa de poder contar com a sensibilidade e a inteligência lúcida de V.Ex.ª a quem a arte e a cultura paulista muito ficarão a dever. Encareço apenas a necessária urgência na tramitação legal, dado que a companhia em questão necessita estrear prontamente.

Arquivo Augusto Boal/IMS

[1] O sistema Coringa foi um modelo de montagem de peça com elenco reduzido criado por Augusto Boal (1931-2009) para permitir a montagem de qualquer peça com elenco reduzido. São empregados quatro procedimentos: desvinculação ator/personagem, perspectiva narrativa unitária, ecletismo de gênero e estilo, e uso da música.

[2] Referência ao Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), órgão de censura oficial da ditadura militar.