Senhor marechal,

Acredito que seus muitos afazeres, antes e depois do movimento insurrecional que o conduziu à chefia da nação brasileira, não lhe tenham permitido tomar conhecimento de um livro curioso, cuja leitura me parece recomendável a todo chefe de governo e que nos Estados Unidos da América do Norte, onde foi originalmente publicado, já alcançou grande massa de leitores. Trata-se de The Presidential Papers, de Norman Mailer, autor do famoso romance The Naked and the Dead, um dos mais vigorosos e melhores trabalhos de ficção inspirados pela segunda guerra mundial.

É um volume de trezentas e tantas páginas, reunindo várias cartas-relatório (papers, como as classifica Mailer, por entendê-las documentos de uma assessoria voluntária, não solicitada mas nem por isso menos válida ou oportuna) endereçadas publicamente ao presidente John Fitzgerald Kennedy por intermédio de várias revistas em que o autor colaborava, Esquire, sobretudo. Nesses documentos em forma de epístola os mais variados temas são livremente desenvolvidos e investigados: delinquência juvenil, preconceito racial, direitos civis, política externa (o vergonhoso episódio da invasão de Cuba, com o consequente fiasco de Bahía de Cochinos, é exaustivamente analisado), liberdade de opinião, a esquerda nos Estados Unidos, o campeonato mundial de boxe – luta entre os pesos-pesados Floyd Patterson e Sonny Liston – etc., sempre com o intuito de oferecer ao presidente Kennedy uma visão informal, antipalaciana, quase audaciosa dos problemas nacionais e internacionais.

Partia Mailer da premissa de que o exercício de um mandato presidencial frequentemente aliena da realidade do dia a dia quem dele se desincumba, dessa realidade que não está contida nas agendas protocolares, nas reuniões do ministério, nas informações dos assessores confidenciais. Uma realidade menor, talvez, mas essencial para a visão de conjunto dos destinos de um povo, precisamente porque é o alicerce que suporta ou derruba o edifício do Estado. Não sei se o presidente Kennedy chegou a ler todos os papers de Norman Mailer; estou certo de que leu vários deles e, mesmo que não tenha concordado com a análise e as provocações (no melhor sentido da palavra), é inegável que terá lucrado muito com a experiência. Afinal de contas, como bem o sabemos, foram seus assessores oficiais que o levaram a embarcar na canoa furada da invasão de Cuba. Mailer nunca o teria induzido a essa aventura, e Kennedy, por outro lado, fossem quais fossem seus defeitos, não tinha o da teimosia cega.

Pois bem, Senhor Marechal: tive oportunidade de ler The Presidential Papers somente agora, há algumas semanas, quando me encontrava preso por obra e graça do coronel intendente Gerson de Pina – ainda encarregado do IPM[1] sobre o Iseb[2] – no quartel do I Batalhão da Polícia do Exército, aqui no Rio de Janeiro. Empolguei-me de tal maneira com o livro que duas ideias me ocorreram: a de editá-lo em língua portuguesa, o que pretendo fazer proximamente, e a de iniciar correspondência semelhante com o Senhor, igualmente unilateral, igualmente voluntária, igualmente audaciosa. (Peço-lhe, por oportuno, que me desculpe o tratamento pouco protocolar; nisso não veja qualquer atitude desrespeitosa ou agressiva, mas antes o desejo de manter um tom menos rígido, menos palaciano, mais coloquial, de cidadão para cidadão). Tenho hoje a impressão, que antes não tinha, de que o Senhor deseja – como eu – a felicidade da pátria. Mas continuo achando que o Senhor ainda não compreendeu ser fundamental para o exercício democrático das altas funções que hoje tem a manutenção de um diálogo vivo e constante com todas as camadas de nosso povo, inclusive aquelas que se colocam em oposição ao seu modo de ser e pensar. (Quando digo oposição, quero dizer oposição de fato, não aquela que lhe vende dificuldades para comprar facilidades, não aquela que se manifesta contrária apenas aos efeitos, mas concorda com as causas). O que vemos todos, no entanto, é a demonstração diária de que o Senhor parece ser adepto do monólogo, de que – por motivos psicológicos que desconheço – é “um homem que não dá o braço a torcer”.

Admito, portanto, que o Senhor possa ter pouco interesse em ler-me e, para ser realista, que tempo não lhe sobre para tais condescendências com quem, aliás, é hoje um dos 486 brasileiros que o seu governo considera indesejáveis para o trato público da coisa pública. Além disso, o Senhor poderia argumentar que eu não sou Norman Mailer; mas o Senhor também não é John Fitzgerald Kennedy: somos ambos muito distintos deles, o que não quer dizer que sejamos necessariamente melhores ou piores. Vivemos outro drama, num cenário diverso, para uma plateia que não é a norte-americana. Não importa: como lhe disse, esta é uma iniciativa unilateral e voluntária. Mesmo que o senhor não leia estas páginas, alguém as lerá. E mesmo que ninguém as leia, terei feito pelo menos a minha catarse.

Outra questão de ordem e de forma que deve ser levantada ainda nestas preliminares é a de que não poderei fugir à primeira pessoa do singular, pois será impossível omitir-me na descrição de experiências vividas por mim e das reações que elas me causaram. Outras pessoas, diante das mesmas experiências, poderiam ter tido reações diferentes. Por outro lado, não sendo modesto de indústria, acho perfeitamente normal que o Senhor não tenha a mínima ideia de quem – ou do que – eu seja. Tomo, por isso, a liberdade de lhe dar um breve retrato pessoal, cuja utilidade adiante se verá, e que, caso lhe falte outro destino, poderá completar as fichas do Conselho de Segurança Nacional e do SNI.

Nasci em São Paulo, na capital, no dia 18 de novembro de 1925. A família de meu pai é de classe média, com uma longa tradição de gerações inteiras dedicadas à advocacia e à vida intelectual, de homens e mulheres voltados para as coisas da literatura, da pesquisa e da dúvida criadora. A política, no sentido profissional da palavra, jamais a tentou, embora meu tio-avô, Alarico Silveira, tenha sido Secretário da Presidência no governo Washington Luís e, mais tarde, Ministro do Superior Tribunal Militar, e meu avô, Valdomiro Silveira, Secretário da Educação e Secretário da Justiça no governo Armando de Sales Oliveira, do Estado de São Paulo. Um e outro, porém, como todas as demais pessoas de sua família, entenderam o exercício de cargos públicos como tarefa, jamais como carreira. A família de minha mãe, igualmente de classe média, produziu também bacharéis e pessoas dedicadas ao magistério, ao comércio e à indústria, sem que a política – como objetivo final – a tenha tentado em qualquer época. São duas famílias paulistas, tradicionais, de recursos materiais discretos, mas romanticamente orgulhosas do fato de poderem traçar suas origens até os primeiros dias da colonização portuguesa. Muito unidas, como clã, são bastante amplas quanto à posição ideológica de seus membros: cobrem hoje uma vasta área, que vai da esquerda consciente ao mais cego udenismo. Alguns deles, por sinal, são até admiradores incondicionais de sua atuação política, Senhor Marechal. Outros, como eu, dela discordam por vários e sérios motivos.

Meus estudos, do curso primário ao superior, foram sempre feitos em São Paulo e, basicamente, em escolas públicas. Frequentei o Ginásio do Estado (era, ao meu tempo, o equivalente paulista do Colégio D. Pedro II, pela excelência dos professores e pelo rigor com que eram ministradas as aulas) e, mais tarde, a Escola Livre de Sociologia e Política, da Universidade de São Paulo. Não cheguei a completar este curso: a necessidade de trabalhar, o casamento e, logo a seguir, a permanência de um ano nos Estados Unidos, disso me impediram. Meu primeiro emprego regular foi na Companhia Editora Nacional, onde abri os olhos para novos aspectos da vida de nosso país em convívio com alguns dos brasileiros mais dignos e competentes que já conheci: Monteiro Lobato e Octalles Marcondes Ferreira, seus fundadores, Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, seus assessores culturais. Em Nova Iorque, durante um ano, frequentei dois cursos na Universidade de Columbia: o de Sociologia, ainda, e o de aperfeiçoamento em atividades editoriais. A experiência feita na Companhia Editora Nacional fora marcante e definitiva e eu já escolhera para sempre a profissão a que me iria dedicar.

Regressando ao Brasil, permaneci ainda alguns anos em São Paulo, naquela empresa, até que me mudei para o Rio de Janeiro, em 1951, onde vim prestar minha colaboração executiva à editora Civilização Brasileira, de que hoje sou diretor e principal acionista.

Sendo por índole e gosto uma pessoa que sempre participa de atividades associativas, porque antepõe o coletivo ao individual, estive desde rapaz envolvido nelas: fui dirigente do Grêmio Estudantil do Ginásio do Estado, fundador e vice-presidente da Câmara Brasileira do Livro, em São Paulo, presidente durante vários anos consecutivos do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, órgão oficial da classe, cuja sede é no Rio de Janeiro. Quando universitário, dediquei-me com todo vigor à campanha pela redemocratização do país, do início da guerra ao fim da ditadura, o que me valeu um período de forçada inatividade nos imundos cárceres da Casa de Detenção, em São Paulo. Não parei jamais, daquela data até hoje. Quanto mais estudo, quanto mais viajo, quanto mais vivo, maior é a minha convicção de que não posso e não devo cruzar os braços diante das gigantescas tarefas que temos todos pela frente. A despeito de tão grande riqueza potencial, a despeito do admirável povo que tem, o Brasil continua sendo vítima de uma estrutura socioeconômica injusta e retrógrada. Continua, por isso mesmo, a ser um foguete nas mãos de potências imperialistas: primeiro Portugal, depois a Inglaterra, agora os Estados Unidos. Entendo que estamos, hoje mais do que nunca, devido à conjuntura internacional, face a face com um formidável desafio histórico: ou a pretensa segurança pela subordinação de nossos interesses a um esquema geopolítico concebido em Washington, ou os azares e perigos de uma luta sem quartel pela conquista de total e verdadeira emancipação.

Tendo comigo que só pode haver uma saída correta e digna para esse dilema em que nos vemos colocados contra a nossa vontade, a segunda, e considerando que dois dos maiores entraves à indispensável descoberta de nós mesmos são a ignorância e a quase total inexistência de veículos para o debate amplo e livre das ideias e posições nacionalistas, já que a maior parte deles é manipulada por interesses que lhes são contrários, procurei colocar minha atividade editorial a serviço do que me ditava minha condição de patriota e de democrata, promovendo o lançamento de estudos, ensaios e pesquisas sobre o complexo drama brasileiro, garantindo a seus autores uma plataforma independente para a divulgação de ideias independentes. Interpretava à risca o espírito e a letra do Artigo 141 de nossa Constituição que, em seu parágrafo 5.°, estabelece: “A publicação de livros e periódicos não dependerá de licença do poder público. Não será porém tolerada a propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a ordem pública e social, ou de preconceitos de raça ou de classe”.

Mas essa atividade, embora intensa, não esgotava meu ânimo participante. Engajei-me com vigor na grande massa dos que, pelos mais variados caminhos, dentro ou fora de partidos políticos, procuravam solução moral e materialmente correta para os graves problemas que dificultavam ou mesmo impediam o desenvolvimento nacional. Liguei-me a escritores e artistas que se entendiam afastados, como eu, de especulações meramente acadêmicas e idealistas, cidadãos que também estavam dispostos a fazer alguma coisa, abandonando de uma vez por todas as posições ora conformistas, ora pessimistas, ora indiferentes. De nossos debates e esforços conjuntos surgiu a ideia de organizar um movimento sistemático, que trouxesse o concurso dos homens de pensamento e cultura aos centros de decisão da vida nacional, tradicionalmente manipulados por figuras de visão imediatista e estreita. Essa iniciativa, sob o nome de Comando dos Trabalhadores Intelectuais, mereceu logo o apoio de centenas de escritores, artistas, professores, estudantes e estava a caminho de sua estruturação jurídica quando foi interrompida pelo movimento insurrecional de que o Senhor fez parte. Embora agisse à luz do dia, pois se considerava – e era – entidade democrática não clandestina, dedicada ao trato público da coisa pública, os preconceituosos e covardes entenderam que daria bons dividendos intrigá-lo junto às Forças Armadas, isto é, junto àquela parcela das Forças Armadas que, por motivos diversos e até obscuros, rebelava-se contra os poderes constituídos e “salvava a pátria” do que lhes parecia intervenção branca das hostes vermelhas.

Dediquei-me também, juntamente com os colegas mobilizados pelo Comando dos Trabalhadores Intelectuais, à tentativa de organizar uma frente ampla, acima de partidos e de limitações teóricas, para o equacionamento prático de nossos problemas mais urgentes: a reforma agrária, a reforma bancária, a reforma administrativa, reformas e mais reformas, em suma, que permitissem ao Brasil a substituição eficaz das bases anacrônicas em que se apoiava sua estrutura socioeconômica. Era trabalho difícil, pois que feria interesses adquiridos, perturbava o status quo dos que se julgavam, talvez por direito divino ou coisa semelhante, senhores inquestionáveis da vida brasileira. Mas, a bem da verdade, havia dificuldades não menores dentro das próprias entidades que compunham a frente ampla em elaboração: o personalismo carreirista de alguns, a afoiteza romântica de outros, que somente poderiam admitir como válidas as soluções radicais, a posição idealista de terceiros, confundiam o desejável com o possível… Erros graves foram cometidos, fortalecendo a argumentação das pessoas e instituições que se opunham, de todas as maneiras, às inegáveis conquistas democráticas que as forças populares aos trancos e barrancos vinham conquistando obter. Foi isso que acelerou, como o Senhor bem sabe, marechal, o processo conspiratório em marcha. “Estávamos entendidos quanto à necessidade de agir prontamente se o Sr. João Goulart quisesse dar um golpe – afirmou-me o general Golbery do Couto e Silva numa conversa interessantíssima que mantivemos, poucos meses depois de vitorioso o movimento insurrecional – mas dispostos a assegurar-lhe o cumprimento integral de seu mandato se ele não o desse. A precipitação aventureira e suicida de alguns setores ditos de esquerda, com a consequente quebra do princípio da disciplina nas Forças Armadas, pôs em marcha o que era ou pretendia ser apenas um aparelho preventivo”.

Sem pôr em dúvida a palavra do general Golbery, um dos seus mais dedicados colaboradores, devo dizer-lhe, Senhor Marechal, que os erros graves cometidos do lado de cá não foram o exclusivo detonador da crise. Ela se tornava mais aguda a cada instante, pois as classes dominantes sentiam iminente uma definitiva perda de substância, a não ser que agissem logo, de modo cirúrgico, como agiram. Não pretendo, porém, analisar aqui período tão importante de nossa História. As feridas ainda não estão cicatrizadas e quem quer que tentasse tal proeza, neste momento, estaria sujeito a injunções emotivas e a conclusões subjetivas. Com o correr do tempo e com a verdade histórica, esse instrumento de que os áulicos palacianos nunca se utilizam, será então possível fixar no período nebuloso e contraditório do governo João Goulart pelo menos um fato brilhante, de incontestável importância social: foi uma das épocas de maior liberdade de opinião em 75 anos de vida republicana brasileira.

Pois bem, Senhor Marechal: chegamos aqui ao motivo principal desta epístola, que é precisamente o da liberdade de opinião. Gostaria que o Senhor se perguntasse, com a firmeza de atitudes que dizem ser característica marcante de seu temperamento, se os historiadores isentos, no futuro, poderão ter conceito semelhante quando se dedicarem à análise do seu governo, desse governo imposto por um golpe de estado cujos objetivos, mil vezes trombeteados, eram defender as liberdades individuais e manter em sua plenitude os princípios da sociedade cristã, democrática e ocidental.

Por melhores que sejam suas intenções pessoais, Senhor Marechal, por mais que lhe pareçam inevitáveis alguns momentos de violência no curso de uma “revolução” (não sei por que é que insistem em denominar assim, de modo sociologicamente incorreto, o movimento insurrecional vitorioso em 1º de abril), sua honestidade, intrínseca, não lhe permitirá esperar resposta afirmativa àquela pergunta. De fato, Marechal, admitamos que muitas das violências e injustiças clamorosas dos primeiros meses foram fruto da euforia punitiva que dominou os vencedores. Esqueçamo-nos por instantes, apenas para encaminhamento de raciocínio, das centenas de vítimas do Ato Institucional, da demissão em massa de professores universitários, da aposentadoria ou demissão sumária de funcionários públicos, da reforma de tantos oficiais de nossas Forças Armadas, todos perseguidos e punidos pelo crime de terem pensado.

Fiquemos apenas nos casos mais recentes, nos que estão ocorrendo agora, depois de um ano e quatro meses de vitorioso o golpe de estado. Pensemos nos IPMs intermináveis, nessa Inquisição militarizada que se julga tão “Santa” quanto a que perseguiu Galileo. Pensemos nos três rapazes, co-autores da série de livros intitulada História Nova, que ficaram presos durante semanas e semanas, por capricho de misteriosas autoridades, acusados do crime de opinião. Pensemos nos livros que estão sendo apreendidos em vários pontos do território nacional pelos agentes da polícia de segurança ou pelo próprio Exército Brasileiro, reduzido à lastimável condição de gendarmerie. Pensemos na mentalidade deformada de alguns militares, que se julgam infinitamente superiores aos civis, em quase todos os terrenos, como se poderá ver desta fala do general José Horácio da Cunha Garcia, comandante da Divisão Blindada, ao receber novos conscritos do Primeiro Batalhão de Infantaria, há algumas semanas:

Estou aqui, prezados conscritos, para dar-vos as boas-vindas. Constituís a segunda turma que instruiremos após a revolução. Não sois nenhum santo, bem sabemos, como todo indivíduo de vossa idade, e vindes para os quartéis carregados da anarquia, da indisciplina e da falta de compostura que predomina lá fora. Vindes, como todos os rapazes de vossa idade, de uma forma de vida dissoluta e sem nenhum significado moral, que lamentavelmente predomina em nosso meio, particularmente nos grandes centros.

Pensemos nos presos políticos, que definham há longos meses nas prisões, como suspeitos de subversão …

Sim, de subversão – a palavra mágica que se presta para justificar todos os crimes e violências, mas que ninguém se dá ao cuidado de explicar claramente o que signifique no contexto político de hoje. Subversivo é quem deseja a modificação pacífica da estrutura socioeconômica nacional; subversivo é quem tenha defendido um governo legitimamente constituído, que não subversivos derrubaram; subversivo é quem se oponha à série de equívocos e desmandos praticada diariamente pelos colaboradores diretos do atual governo: a compra das concessionárias, a permissão extravagante de um porto para a Hanna Corporation, a modificação da lei sobre a remessa de lucros, a submissão total de nossa política exterior aos interesses americanos, o cinismo oportunista da lei dispondo sobre inelegibilidades, os golpes contra a Petrobrás representados pelas disposições recentes sobre a indústria petroquímica e a revogação do ato que encampava as refinarias particulares; subversivo é quem se oponha aos atos de violência cometidos pelos Estados Unidos no Vietnã e em São Domingos; subversivo é todo socialista; subversivo é todo materialista. Subversivo, em suma, é todo aquele brasileiro que não concorde em gênero, número e grau com o que pensem, digam ou façam os homens da chamada “revolução”.

Sou obrigado a voltar, Senhor Marechal, ao trato do caso pessoal, para exemplificar melhor. Desde o movimento insurrecional várias coisas me aconteceram: a) meus direitos políticos foram suspensos por dez anos, pelo Ato Institucional, sem que eu tenha tido oportunidade de me defender; b) já fui submetido a cinco IPMs, sendo reinquerido em dois deles; c) fui alvo de um processo criminal, no Estado da Guanabara, acusado de “crime de subversão”; d) fui preso durante nove dias, como suspeito de “crime de subversão”; e) livros editados pela minha empresa têm sido apreendidos em vários pontos do território nacional, sob a alegação de que, são ou podem ser “subversivos”.

E por que tudo isso? Porque autoridades maiores ou menores, subordinadas a seu governo, Senhor Marechal, não podem admitir que um homem como eu, cujas origens sejam burguesas, que dirija uma editora que opera dentro do sistema capitalista, que pertença – estatisticamente – àquele percentual mínimo de nossa população que constitui as chamadas classes dominantes, tenha as ideias que defendo e aja em função delas. Não podem entender, igualmente, que a editora Civilização Brasileira esteja trabalhando no intenso ritmo atual movimentada apenas pelos seus próprios recursos financeiros, proporcionados e a cada instante ampliados pela ampla aceitação popular dos livros que edita.

Sou, portanto, vítima da curiosa contradição reinante no seio do chamado “governo da revolução”: quer manter a ordem democrática, segundo propala, mas considera incômodo, suspeito ou mesmo pernicioso quem dela se valha em sentido prático. Uma “ordem democrática”, Senhor Marechal, que me traz à lembrança aquela famosa frase de George Orwell, em seu livro The Animal Farm: “Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que outros.” Serão os encarregados de IPMs mais iguais do que os outros?

Eu poderia repetir aqui, talvez para a sua diversão, Senhor Marechal, algumas perguntas que me fizeram no correr dos IPMs a que já fui submetido. Mas seria alongar demasiado esta epístola, que já está quilométrica. Dou-lhe apenas, numa frase, a síntese de várias delas: – A editora Civilização Brasileira é subvencionada pelo ouro de Moscou? Pois não parece ser outra a preocupação de vários oficiais do seu exército, Senhor Marechal. E o que nos mostra tal preocupação? Que esses oficiais são dominados, como quase todo o seu governo, por um preconceito geopolítico: qualquer pessoa que, na defesa de posições nacionalistas, fira direta ou indiretamente os interesses americanos está a serviço dos interesses soviéticos.

É, evidentemente, uma conclusão falsa e tendenciosa, muito útil e elástica. O Senhor irá encontrar, nas páginas deste número da Revista Civilização Brasileira, algumas tentativas de lhe demonstrar como é perigoso para o futuro nacional esse preconceito tão mesquinho e primário. O Senhor poderá então concluir, sendo mesmo o homem de bom-senso que seus amigos e admiradores retratam, que não haverá jogo democrático enquanto perdurar esse estado de coisas; que não poderá haver paz e diálogo entre o seu governo e o povo enquanto continuarem as perseguições inquisitoriais; que não poderá ser encaminhada a recuperação nacional enquanto a família brasileira estiver dividida em dois grupos, os cassados e os cassadores.

O chamado “delito de opinião”, Senhor Marechal, é o crime que devemos todos praticar diariamente, sejam quais forem os riscos. Se deixarmos de ser “criminosos”, nesse campo, seremos inocentes… e carneiros.

Pedindo-lhe desculpas por ter abusado de seu tempo e de sua paciência, Senhor Marechal, subscrevo-me,

Atenciosamente,
Ênio Silveira

Revista Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, ano 1, n. 3, jul. 1965, pp. 3-11.

[1] N.S.: Inquérito Policial Militar.
[2] N.S.: O Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) foi criado em 1955, pelo então presidente Café Filho, e extinto com o golpe militar de 64. Era destinado ao estudo, ensino e à divulgação das ciências sociais.