Magdalen [College], Oxford, 24 de janeiro de 1939

Meus caros Rosita e Thiers,

Como vai essa vida lírica? Vocês dois são positivamente o casal mais lírico que eu conheço. E a garotada? Ó inveja de vocês! Ó quando eu puder ter um ou dois me atrapalhando as pernas por dentro de casa, fa­zendo pipi na sala, chorando de noite, querendo mamadeira, mais tar­de fazendo perguntas sobre avião, sobre navio de guerra, sobre solda­do, sobre Deus. Coisa boa é isso! No fundo, vocês não sabem porque são pais…

Por minha parte, vou vivendo aqui nessa velha cidade de gênios e de bêbados, me sentindo melhor com o contato dos segundos. Em gran­de tédio literário, de tanto que leio e que tomo notas e que escrevo. Nada pior que a constância obrigatória de um clima que a gente se habitua a ver como evasão e como charme e que, de repente, se torna dever.

É verdade que andei dando umas voltas por Paris — umas boas vol­tas! — e que, se tudo correr normal, hei de estar em março na Itália com o Tatá [Octavio de Faria] que, por essas horas, deve estar embarcando e, quan­do essa carta chegar aí, aportando a essas plagas. Mas, às vezes, o confinamento entre quatro paredes, em tête-à-tête com Shakespeare, Shelley, Keats, Wordsworth etc., me cansa mais que uma hora de remo a fio no Tâmisa.

O calorzinho aí deve estar o suco, não? Ontem nevou aqui o dia in­teiro. É bonito de ver todas essas torres, todos esses edifícios de velhi­ce escura, subitamente ficarem de cabeça branca. Mas, na rua, é uma imundície, e se não fosse curioso espiar todo mundo que passa com neve nos ombros e no chapéu, e os automóveis com bigodes nos para-lamas, e tudo fumando de frio, seria antes desagradável. Contudo, neve aqui é sempre um sinal de aumento de temperatura, o que é bom e gosto.

Tenho de vez em quando recebido uns artigos sobre meu livro,[1] em geral a mesma xaropada e a mesma incompreensão. O artigo do Rosá­rio Fusco é dos melhores, se bem que haja uma porção de coisas que eu não entendo. Esse súbito paralelo com Baudelaire, por exemplo, me faz boiar. Por que Baudelaire? O elemento “flores do mal”, como se de­cidiu chamar atualmente a tudo que revele um estado de sordidez poética, é uma coisa de sentido obscuro e sem grande importância crítica. Por que se admirar tanto com um soneto que vale por ser benfeito, por exemplo, e por ser corajoso como “Soneto da intimidade”, e passar em branco sobre uma poesia como a “Vida vivida”, que é uma das melho­res coisas que já fiz, onde pus quase tudo e onde a harmonia do verso é de primeira ordem, modéstia à parte? Por que não sondar o elemento poético da poesia, em vez de estar fazendo conjeturas sobre o meu po­bre self? Vontade de descobrir coisas… Eu não sei nada, ou quase nada, sobre mim, que dirá os outros, não acham? Só quero ver a cara dessa gente quando saírem as Elegias, que é uma poesia completamente reduzida à simplicidade do sentimen­to e de um lirismo quase “suburbano”. Que elementos terão eles então para dizer que eu sou assim ou assado, perdido ou puro, poeta de Deus ou do Diabo, poeta do “sublime” ou do “simples”? Um poeta, para mim, é o poeta de sua poesia, e a poesia de um poeta é um sistema “inexpe­riente”. A experiência dá “fórmulas”, mas nunca “formas”, e confundir poesia com experiência me parece um erro danado. Você, Thiers, no seu artigo, disse muito bem: poesia é desencantamento, desencantamento tanto do sublime como do simples e, nos dois casos, poesia.

Mas nada disso tem muita importância. O que importa é que eu es­tou com inveja de vocês, como vocês estão de mim. Ah, toda a minha poesia por um raio de sol, por um banho de mar em Copacabana!

My life is dreary, dreary,[2] como disse o velho Tennyson, que é aliás um bem pobre poeta. Hoje à noite tem pileque, amanhã também.  Santo estado alcoólico, tão “falsamente” poético, mas tão camarada para o espírito da gente…

Deixo aqui o meu melhor abraço e os melhores votos para este ano, votos que se estendem à pirralhada e à vida em geral.

Saudades do

Vinicius

Querido poeta: correspondência de Vinicius de Moraes. Organização de Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, pp. 82-84.

[1] N.S.: Novos poemas, quarto livro de Vinicius, publicado em 1938 pela José Olympio.
[2] N.S.: “Minha vida é triste, triste ” é verso do poema “Mariana”, de Alfred Tennyson (1809-1892).