[Rio de Janeiro, 1989]

Meu caro Spinoza,

A vida em Amsterdã, depois da absurda excomunhão e de outros dissabores, devia ter sido bastante penosa para você, apesar da aco­lhida que desde logo lhe ofereceram os Colegiantes, esse curioso grupo de cristãos, que reunia indivíduos interessados na interpretação da Bíblia, estudiosos de filosofia cartesiana, e ainda outros, abertos a fontes neoplatônicas e a obras de místicos como Jakob Böhme.

Foi no círculo dos Colegiantes de Amster­dã que você encontrou ambiente para expor suas ideias sob a forma ousada em que já se apresentavam no esboço do Breve tratado, fon­te onde eu gosto muito de beber.

Mas creio que deveria ainda haver algo de hostil no clima de Amsterdã quando você, em 1660, decidiu mudar-se para a aldeia de Rijnsburg, centro dos Colegiantes. Ali você es­taria tranquilo para pensar. Conviveria num ambiente cordial.

Às vezes chego a imaginar-me em Rijnsburg, invisível ouvinte do círculo dos Colegiantes, que você ali frequentava. Era um prazer vê-lo, aos 28 anos, moreno, de cabelos e olhos escuros, os olhos que deveriam ser se­melhantes aos de sua mãe, a portuguesa Ana Débora. Tenho quase certeza de que as primei­ras palavras que você balbuciou foram em português. E isso me comove.

Ali estava você, no meio de homens lou­ros ou ruivos, que o escutavam surpreendidos e talvez mesmo perturbados. Essas minhas ima­ginações o acompanham até o frio sótão, onde você habitava num quarto alugado. Parece-me vê-lo debruçado sobre sua mesa de trabalho, iluminada por lâmpada de luz hesitante, tra­balhando e retrabalhando pensamentos e sentimentos nascidos de sua experiência direta da unidade.

Lembrei-me então desses versos de Baudelaire, embora fossem tranquilas as ruas de Rijnsburg e só fosse ouvido o sopro de ven­tanias frígidas:

L’Émeute, tempêtant vainement à ma vitre,
ne fera pas lever mon front de mon pupitre;
car je serai plongé dans cette volupté
d’évoquer le Printemps avec ma volonté,
de tirer un soleil de mon coeur, et de faire
de mes pensers brûlants une tiède atmosphère.[1]

Caraterística muito simpática dos Colegiantes é nunca haverem exigido de você a adesão ao cristianismo, ao batismo, nem que você aceitasse a encarnação do Deus infinito num homem.

Mas não deixa de surpreender você ad­mitir que “pode ser que Deus tenha impresso em vós uma ideia clara d’Ele mesmo, de modo que, por amor, vós esqueceis o mundo e amais os outros homens como a vós mesmos. Em todo caso, é evidente que a um homem dotado de tal disposição repugne tudo quanto é chama­do de mal e, por esta razão, o mal não pode existir n’Ele” (Carta XXIII a Blyenbergh – Voorburg 1665 – O.C., p. 1220).

Esse homem bem poderia ser o Cristo. E talvez algo semelhante haja acontecido a outros raros seres humanos. Muito provavelmen­te a você, querido amigo.

É inegável que a doutrina de Cristo tenha marcado seu pensamento, principalmente na primeira etapa de suas cogitações filosóficas. Assim, na introdução do Breve tratado, você diz que visa a “curar aqueles que se acham doen­tes em seu entendimento por meio de um espírito de doçura e paciência, segundo o exem­plo do Senhor Cristo, nosso mestre maior” (O.C., 71). E, bem mais tarde, no Tratado teoló­gico político, publicado em 1670, você escreve: “Eu não li em lugar algum que Deus tenha aparecido ao Cristo, ou que lhe tenha falado, mas o texto ensina que Deus se revelou aos apóstolos pela intermediação do Cristo e que Ele é a via da salvação, ao passo que a Lei anti­ga havia sido transmitida por uma voz ecoan­do no ar, mas não imediatamente… Por conse­guinte, se Moisés falava face a face com Deus, como um homem com seu semelhante (isto é, pela interposição de seus corpos), o Cristo, ele próprio, comunicou-se com Deus de espírito a espírito.

Em conclusão, nós declaramos que, à ex­ceção do Cristo, ninguém recebeu jamais a revelação de Deus sem o auxílio da imaginação, isto é, de palavras ou imagens visuais” (T.T.P., O.C., 681).

Gostei muito de ler essas suas palavras, por­que sou muito amarrada ao Cristo. Peço-lhe per­dão por tê-las transcrito tão longamente numa carta a você mesmo. Mas isso me deu prazer.

Entre os Colegiantes de Rijnsburg, como já havia acontecido no grupo de Amsterdã, você fez grandes amigos. Uma carta de Simon de Vries (Carta VIII) bem demonstra o contato mantido entre os dois grupos. Além de Simon de Vries, outro amigo delicadíssimo foi Jarig Jelles, firme até a morte. E ainda o editor Juan Rieuwertz, Balleing, para não citar outros. Você, que tanto amava a solidão, a meditação, tinha o dom de fazer amizades sólidas. Insisto nisso porque é coisa rara. Quase sempre as amizades são instáveis e deixam na gente traços de mágoa. Pergunto-me mesmo se, entre os mais fiéis de seus amigos, todos entendiam a profundeza de sua filosofia. Não tenho dúvida de que sua personalidade, sua atitude para com o outro irradiassem algo como a força do ímã, vinda do âmago de seu ser.

Você polia lentes. Comentam alguns que este trabalho era feito como um ofício, como meio de manter a vida. Mas outros o negam. Sua subsistência modesta estava assegurada por amigos fraternos (Vries). As lentes eram poli­das a fim de serem utilizadas em seus próprios trabalhos científicos, tal como faziam vários sá­bios da época. É possível que algumas fossem vendidas, pois seriam procuradas por sua perfeição, mas não como meio de subsistência. Aqui faço uma hipótese. O polir lentes obede­ce a leis geométricas. Você as polia com prazer, usando as próprias mãos. Divertiu-me o que você diz, em carta a Oldenburg, a propó­sito das lentes polidas por Huygens, que “se dedicou e se dedica inteiramente ao polimen­to das lentes; em vista disso, ele construiu uma bela máquina para a fabricação de várias len­tes. Eu não sei ainda quais tenham sido os re­sultados, e, com efeito, nem sequer me inte­resso. A experiência, em verdade, mostrou-me suficientemente que com a mão é possível po­lir as lentes esféricas muito melhor e com mai­or segurança do que lograria uma máquina” (Carta XXXII, Voorburg, 1665).

Você admitiria a possibilidade de existir uma relação estreita entre o polir de lentes, com as próprias mãos, dentro de regras geo­métricas, e as transformações que fizeram do Breve tratado, iniciado em Amsterdã − a Ética −, construída sob forma geométrica, sem ces­sar, polida e repolida, até 1775?

Nosso Machado de Assis percebeu algo dessa relação quando disse num soneto, que já citei na carta anterior: “nas mãos a ferramen­ta do operário/ no cérebro a coruscante ideia”.

Dando um passo a mais, ver-se-á ficar transparente, em você próprio, relação estrei­ta entre pensamento e corpo (suas mãos) tra­balhando, cada um em sua clave, numa personalidade bem integrada.

Foi no retiro de Rijnsburg que você es­creveu o Tratado da reforma do entendimen­to. Desejei muito este seu livro, mas só conse­gui anos depois de já ter comigo a Ética. As­sim, foi uma grande alegria quando o encon­trei. Nas primeiras páginas, fiquei logo como­vida lendo o que você diz de si próprio, de maneira tão discreta, mas que deixa transparecer um sofrido e profundo trabalho interior.

Sem maior demora, segue-se a exposição de seu método de filosofar, tão ligado à sua maneira de viver.

Amigo, você nem avalia a onda de lem­branças que logo se ergueu dentro de mim.

Revi-me quando ainda ginasiana. Depois de prestados meus exames de álgebra e geometria no Liceu Alagoano (Maceió), logo no início das férias, eu estava um dia arrumando meus livros: separei os volumes de álgebra, geometria e cadernos correspondentes, guardei-os num armário próximo de minha peque­na mesa de estudo (era linda essa pequena mesa com seus elegantes pés volteados), e co­loquei sobre ela livros de física, química e his­tória natural, que seriam as matérias no ano letivo seguinte, de acordo com os programas daquela época.

Meu pai estava perto, sentado numa cadeira de balanço. Parecia totalmente absorvi­do na sua leitura.

Foi com surpresa que o ouvi perguntar-me:

– Você vai recolher seus livros de geome­tria?

– Sim, agora terei outras matérias para estudar.

– Lamento, porque geometria não é uma matéria como as outras. Não é apenas o estudo das propriedades das figuras. Ensina a arte de pensar.

Meu pai, em poucas palavras, mostrava-me uma perspectiva nova de estudo. Eu tinha na ocasião 14 anos de idade, mas me fe­riu a expressão “arte de pensar”.

Peguei logo meu preferido tratado de geo­metria e coloquei-o ao lado dos livros programados para o último ano de preparatórios, con­forme se dizia naqueles distantes tempos. Le­vei-o também comigo para a Bahia, onde fui fazer o curso médico.

De quando em vez, abria-o ao acaso e ficava seguindo linhas traçadas no espaço, que conduziam sempre a demonstrações exatas. Assim, cedo tomei o hábito de pro­curar ordenar e deduzir, embora não con­seguisse chegar ao clássico “como quería­mos demonstrar” e esbarrasse tantas, tantas vezes, diante de portas misteriosas. Nas ciências biológicas as coisas são muito com­plicadas.

Nessa época, eu estava longe de supor que meu pai havia me impulsionado para o segun­do gênero de conhecimento, conforme você o des­creve: conhecimento dedutivo regido pela ra­zão, que deixa para trás o “ouvi dizer” ou as “experiências vagas” do primeiro gênero de co­nhecimento.

Muito mais tarde, quando comecei a estu­dar apaixonadamente sua filosofia, embora de maneira dispersiva, verifiquei o quanto ainda mais difícil que a prática do segundo gênero de conhecimento será a penetração para além da cadeia de operações intelectuais dedutivas, até que se consiga atingir o terceiro gênero de conhe­cimento, ou seja, a apreensão imediata da es­sência das coisas.

Foi um relâmpago deste último gênero de conhecimento que deslumbrou Antonin Artaud, quando ele de súbito descobriu o Ser da abelha: “j’ai vu un Être, celui de l’abeille vivre, cela me suffit pour toujours”.[2] Vivências semelhantes já aconteceram a muitos outros: místicos, poetas, pintores, músicos e mesmo a homens e mulheres comuns em instantes privilegiados, que parecem eternos, mas quase sempre são fugazes.

Você visa a transmitir a maneira de alcançar a essência das coisas com maior estabilidade.

Para galgar esta escalada, seu método en­sina que será necessário, preliminarmente, “uma meditação assídua e a maior firmeza de propósitos”, além de traçar uma regra de vida e prescrever para si próprio um objetivo bem determinado (Carta XXXVII, aj. Bauwmester).

O pensamento deter-se-á sobre uma ideia verdadeira, pois “deve existir em nós, como instrumento inato, uma ideia verdadeira”. Neste difícil caminhar, quanto maior for o nú­mero de ideias verdadeiras, ou seja, das essên­cias das coisas existentes, compreendidas pela reflexão, mais se ampliará o espírito daquele que pratica este método. E, sobretudo, acen­tua você, o método alcançará maior perfeição quando o espírito se aplica ao conhecimento do Ser absolutamente perfeito (Tratado da re­forma do entendimento, 39). Desde o início, pois, convirá dedicarmo-nos a chegar o mais rapi­damente possível ao conhecimento daquele Ser.

Não sei se o entendo bem. Mas não consi­go aceitar que você seja um extremado racionalista, segundo se repete habitualmente.

Só em Jaspers encontrei um justo comen­tário: “Spinoza comunica sua filosofia pelos meios que a razão fornece, mas estes não esgotam seus fundamentos decisivos”. Estes “fundamentos decisivos” pro­vêm, parece-me, da experiência da totalidade que você apreendeu intuitivamente como uma verdade absoluta.

Perdoe-me se comparo sua concepção da unidade original das coisas à visão do “plane­tário de Deus”, vislumbrada por Carlos Pertuis.[3] Mas Carlos era fraco. Sua personalidade estilhaçou-se sob o impacto da visão extraordiná­ria e acabou internado, pelo resto da vida, num hospital psiquiátrico.

Você suportou, decerto deslumbrado, o fulgor da experiência súbita, mas a estrutura forte de sua personalidade manteve-se coesa. Mas a experiência direta era inefável. Como falar aos homens? Seria preciso recorrer à lin­guagem racional. Assim você o fez, desdobrando pensamentos, desvelando paixões e a es­cravidão que elas impõem, ateando fogo sa­grado ao desejo de liberdade e de beatitude, perturbando mundo afora muitas cabeças. In­clusive, querido amigo, meu curto pensar, meu fraco intuir.

Nise

Nise da Silveira. Cartas a Spinoza. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, pp. 33-43.

[1] N.S.: “O Tumulto, golpeando em vão minha vidraça,/ Não me fará volver a fronte ao que se passa;/ Pois que estarei entregue ao voluptuoso alento/ De relembrar a Primavera em pensamento/ E um sol na alma colher, tal como quem, absorto,/ Entre as ideias goza um tépido conforto.” Cf. BAUDELAIRE, Charles. “Paisagem”. Poesia e prosa. Edição organizada por Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 169.
[2] N.S.: “Eu vi o Ser da abelha, e isso para mim foi definitivo”.
[3] N.S.: Carlos Pertuis foi um dos esquizofrênicos cujos desenhos e pinturas foram estudados pela doutora Nise da Silveira.