Vigo, 24 de junho de 1896

Meu bom e querido Pedro Freire,

Ora, venha de lá esse abraço! Ainda há pouco, às 8h00 da manhã, quando o correio me entregou a tua carta de 1º do corrente e no sobrescrito dela reconheci tua letra, confirmada pelo dístico da tua secretaria, tive tão vivo prazer, que este dia, dia de São João, de insípido e mau, como ameaçava ser, à semelhança dos anteriores, se me fez alegre e feliz. E esse prazer cresceu logo de intensidade ao ter posse do que den­tro vinha escrito: é que eu ansiava por essas tuas pal­avras animadoras com mais sobressalto que o namora­do quando espera aflito a resposta definitiva do pai da moça com quem quer casar. Muito obrigado! Ah! que alívio, meu bom Pedro! Imagina que a minha situação aqui começava a melindrar-se perigosamente, porque, confiado, e, com razão, no teu socorro, endividei-me um pouco para montar casa e vai pingar justamente agora a data do pagamento. Pela que marcas para me chegar ao pelo o revigorante sopro do áureo Amazonas, estarei sem dúvida salvo e de­sembaraçado. Sim, senhor, respiro hoje um pouco melhor! Meu desejo, acredita, era poder dar braços e lábios a todas estas garatujas que me estão saindo da pena, para que te cobrissem de beijos e abraços agradecidos. Mas é impossível que estas palavras, escritas ainda sob a impressão imediata da alegria que me deu tua carta, não respirem alguma coisa da felicidade que me dilata o coração e me alegra o rosto. Sinto-me contente. Puseste-me a alma em dia de festa: abriste-me as infernizadas janelas deste velho castelo já meio desmantelado; acendeste-me os poeirentos lustres que há muito jaziam esqueci­dos e mortos, sinistramente dependurados do teto, como inúteis esqueletos de antigas alegrias já extintas; arrancaste-me os instrumentos dos estojos em que dormiam como cadáveres, levantaste a tampa do piano, e eis, meu Pedro, que os meus formosos e travessos demônios dos dias felizes, tão raros, aliás, sobem já do porão, onde cabeceavam de tédio, e atiram-se aos saltos e aos guinchos, a rir e a cantar, cá acima para o sótão, onde hoje há festa e onde neste instante se preparam para dar um concerto em tua honra e em grata homenagem ao bem que me fizeste.

A minha louca de casa, essa doida e ama­da Fantasia, que tem a culpa de todas as tolices que tenho escrito até hoje; essa, pudesses vê-la tu! anda neste momento às braçadas com as flores para engri­naldar o castelo que reanimaste com a tua carta, e supõe, a tonta! que vai receber tua visita. E hoje é dia de São João! e todo esse bulício festivo que vem das ruas até à mesa em que te escrevo, me parece um prolongamento dos preparos da minha festa.

Como é poderoso o efeito de uma boa notícia! — ainda ontem à noite e mesmo já hoje ao levantar-me da cama, irritavam-me as gaitas galegas e os cantos folgazões dos que passavam na rua. Não tive ânimo de sair ontem à noite, recolhi-me triste com o coração encharcado de desconsolo e saudade, e eis que agora me alegram e fazem bem aos nervos esses mesmos bandos que continuam, pelas ruas, a passear o me­nino São João entre cantigas populares e música de bombo, guitarra e gaita! Pois viva São João, com mil bombas e outros tantos foguetes de estalo ou sem estalo; e viva tu, que para mim também foste um Batista, derramando-me na moleira ressequida a pinga reanimadora.

E agora, enquanto os meus demônios azuis folgam e se divertem, deixa que te diga que a tal Espanha salerosa[1] de que falas só perdura na imaginação dos que sonharam com Byron e outros encantadores mentirosos. Queres saber o que isto é? é uma coisa que faz saudades do Brasil por tudo e todos os motivos. Se comparasse uma a uma as comarcas deste velho país com os tenros Es­tados do Brasil, a vantagem seria toda nossa. E particularmente de Vigo, dir-te-ei que isto é uma espécie de Maranhão, mas sem a índole hospitaleira de nossa terra, sem o oriental asseio dos nossos cos­tumes entre ricos e pobres, sem aquela doce ingenui­dade das famílias do Norte do Brasil e aquela pro­verbial virtude das senhoras de toda idade e condição, e, principalmente, sem aquela vivacidade satírica dos maranhenses e aquela dominadora inteligência dos nossos patrícios, que por toda parte se espalha e por toda parte domina. Este povo, ao contrário do nosso, é porco, é estúpido e é velhaco. A estupidez e a brutalidade andam aqui aos coices pelo ar e são respiradas por todos os poros. Bestianizo-me aqui de um modo fantástico, meu amigo; sinto brotarem-me ferraduras por todo o corpo e até na alma já me repontaram orelhas de burro. Felizmente tenho muito que fazer e o tempo que me sobrar do trabalho consular será absorvido pelas letras e pela pintura, pois ainda conservo o gosto por essa velha cachaça dos pincéis.

Termino pedindo-te ainda um obséquio: manda-me o teu retrato, que tenho aqui em casa, em uma das paredes do meu gabinete de trabalho, lugar reservado para ele, entre outros que amo. O meu aí vai por esta mesma via.

Teu

Aluísio Azevedo

Aluísio Azevedo. O touro negro. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1961, pp. 124-127.

[1] N.S.: Graciosa, garbosa.