Rio de Janeiro, 19 de junho de 1962

Olha, meu Maria, sofrimento pior do que o jogo contra a Tchecoslováquia, só mesmo sofrimento de amor ­­– e, assim mesmo, não sei não… Quando se ama uma mulher e ela, em geral, com toda razão, briga com a gente e quer se separar, e toda essa coisa, fica-se desarvorado, tomam-se pileques transmontanos, briga-se na rua e chega-se a querer morrer. Mas, em partida de futebol, não. A gente quer viver para ver a vitória. Mas, ao mesmo tempo, o corpo pede a morte. Por isto, que se passa a ser o elo fragílimo de uma monstruosa vasoconstrição coletiva. E o que poderia chamar de uma terrível “solidão em comum”. As artérias não foram feitas para suportar este tipo de emoção, daí a hecatombe consequente: pessoas gritando “goooooool” e caindo fulminadas por um enfarte: paralíticos que se erguem, no clímax de uma arrancada de Garrincha: seres sadios, que tem derrames e ficam paralíticos­ ­­­­– vale tudo. Nunca a vida humana valeu menos, do que quando Amarildo fez aquele gol de empate. Eu tive que me levantar, discretamente, tomar meu pulso (estava a 120), lavar o rosto, tomar um tranquilizador (o 2º do dia) e me espichar, por uns 10 minutos, sentindo que, se meu espírito fraquejasse, a morte poderia marcar, facilmente, um tento.

E, no entanto, você sabe, meu Maria, que eu não sou dessas coisas. Aqui, no Brasil, torço pelo meu Botafogo, vibro com as suas vitórias – mas nunca me passou pela cabeça ter medo de morrer num jogo do “glorioso”. É que o Brasil é um fenômeno realmente sui generis dentro do concerto das nações. Há, exatamente, 23 anos (quando não havia Eder Jofre, Oscar Niemeyer, Maria Esther Bueno, Bruno Hermany, Dias Gomes e Anselmo Duarte), eu quis dar num grã-fino português, no Cassino Estoril, só porque ouvi falar mal – e em francês, note bem! – da bandeira brasileira. Dizendo que ela é de mau gosto. Ela é de mau gosto, sim: e daí? É a nossa bandeira! Pode haver nada mais lindo do que amar uma mulher feia?

Esse jornalista francês Daniel Garric, que disse no “Le Figaro”, transcrito no “Jornal do Brasil”, de 14 do corrente, que um psicanalista interpretaria o entusiasmo dos brasileiros, em partidas internacionais, como um fenômeno de transferência coletiva, por ser “o único terreno em que eles (brasileiros) se podem comparar aos maiores e mesmo superá-los” – esse Garric não é de nada. É mais um europeu querendo usar os detritos de uma cultura decadente para cima de nós. E todos esses desportistas mencionados, onde é que ficam? Não foram, por acaso, considerados “os maiores”, dentro dos seus setores? Quem faz, hoje, no mundo, música popular melhor do que nós? Do que Antonio Carlos Jobim, Baden Powell, Carlos Lyra e Moacir Santos? Olhe, meu Maria, eu não sou dessas coisas, mas, o que seria de Marcel Camus se não existisse Vinicius de Moraes?

E o melhor de tudo é que a gente não liga para nada disso. E eles ligam. É por essas e outras, que eu ando, ultimamente, desenvolvendo uma certa xenofobia, muito contra os meus princípios humanos e democráticos. Você, outro dia, num “suelto” de sua revista disse uma coisa formidável e tão verdadeira: “Nós somos um país de pessoas”. Pessoas que existem, vibram, amam, sofrem e morrem juntas, numa partida de futebol contra a Espanha ou Tchecoslováquia.

Meu Maria, eu estou lhe falando tudo isto, hoje, que somos bicampeões do mundo. Sei que houve enfartes, embolias, cabeças estouradas – novos mortos que silenciarão, no túmulo, o seu desesperado amor por esta terra triste e linda. Esta terra, onde há cajus e jabuticabas, choros de Pixinguinha e amigos verdadeiros. E ainda mais: “pelés”, “manés garrinchas” e a palavra “saudade”, que as outras terras não têm.

É o teu irmão, Vinicius.