Buenos Aires, bordo do Madalena, 19 de setembro [de 18]93

Minha adorada Maria Augusta,

Decididamente, minha Cota, não se morre de dor, desde que eu não morri ainda. Mas morrerei, ou enlouquecerei, se isto continua, e eu não posso ir reunir-me contigo, ou tu comigo. Não sei, não sei como ainda vivo! Mas esta vida que eu levo é atroz, é desesperadora: mata-me a fogo lento, sem um consolo. Quando Deus me acudirá? As lágrimas não me deixam escrever-te. Beijo o teu retrato, beijo o de João, lembro-me de nossas filhas e de Ruizinho, e o pranto me sufoca. E estou-te escrevendo doente, de cama, num beliche de vapor, sofrendo de uma moléstia insuportável, que nunca padeci, e que me aparece agora, em consequência da vida de prisioneiro, da imobilidade, da alimentação irregular, do uso contínuo da roupa de pano que me envolve desde a triste noite, em que [te] deixei. E sozinho, minha Cota, porque não tenho quem me entenda, e com quem desafogue! Quando Deus me valerá? Que fiz eu, inocente, para merecer isto? Que fiz eu, senão trabalhar pelo bem de meus seme­lhantes, socorrer os perseguidos, defender os desamparados?

Nem ao menos sei o que aí se passa, que caminho levam os acontecimentos no Rio, onde estás, se aí, se em São Paulo… nada!

O telégrafo está interrompido, e vejo-me, sem remédio, condenado a esta incomunicabilidade, que é, para mim, mais uma agonia mortal. Como estarás? E nossos filhinhos? E nossa casa? E os interesses de minha vida, aquilo que te confiei, que recomendei tanto aos teus cui­dados, e que representa o total dos nossos recursos neste mundo? Tenho sonhos terríveis. Passo por alucinações. Vejo desastres em nossos filhos, doenças em ti e neles. Tudo me parece, às vezes, irre­mediável, perdido. As noites são-me de insônia, os dias são inter­mináveis. Não leio, não faço nada. Já 14 dias de separação. Quem me amparará, meu Deus?

E que separação! Nem ao menos um momento de despedida. Eu tinha suplicado que me deixassem, na passagem, saltar um mo­mento na rua dos Inválidos, para te abraçar, e morrer depois, se preciso fosse. Acharam impossível essa concessão. Tiveram razão talvez. Eu talvez não tivesse mais forças de deixar-te.

Seguimos até a casa, onde tinha de asilar-me[1] e onde nos foram encontrar os nossos dois bons amigos, por quem te mandei os meus últimos recados. No caminho, o carro teve de parar entre um batalhão, que desfilava ao som da corneta. A noite que tivemos não te posso descrever. Em claro e em pé toda ela, com os dois companheiros que nos guardavam, um dos quais, o ex-secretário da Legação chilena (nota bem: não o atual, mas o antigo secretário)[2] me acompanhou até a bordo do paquete, prometendo-me, na despedida, visitar-te, e levar-te notícias minhas. A cada passo, trotavam à nossa porta pa­trulhas de cavalaria, e rumores suspeitos sobressaltavam o dono da casa. Uma vez tivemos anúncio de que a polícia, com um piquete, procedia a uma busca em um trapiche vizinho. Parecia fora de dú­vida que nos tinham seguido a pista. Fomos apressadamente escon­didos, num lugar indescritível, entre fardos de farinha e farelo, onde aguardamos longo tempo o desenlace. Afinal pudemos safar-nos do terrível esconderijo, e continuamos a esperar o dia. Apenas este raiou, puseram-se em campo os nossos dois solícitos benfeitores, e, a poder de engenho e astúcia, multiplicados pela caridosa intenção que os animava, levaram-nos a cabo a evasão. Às seis e meia da manhã deixá­vamos a ponte, conduzidos por um bote de um remador, eu com o disfarce de que tens ideia, à vista e ao alcance dos tiros das sen­tinelas. O catraieiro, certo de que íamos de passeio a Niterói, só em meio caminho teve notícia de que pretendêssemos tocar no Madalena, onde, ainda assim, não atinou que íamos ficar, senão depois que baldeamos para bordo a minha malinha e o meu saco de viagem, cuja condução peço-te que agradeças ao bom Cazuza, tão prestimoso e dedicado até o fim. Pouco tempo tivemos mais do que para em­barcar: o vapor levantou ferro pouco depois, e, ao deixarmos a barra, ouvíamos os primeiros tiros do bombardeio. Que tremendas emoções! Estavas tu a essa hora na Tijuca, minha amiga, meu anjo?

O vapor, minha Cota, era o mesmo que, no começo deste ano, nos conduziu à Bahia, e o mesmo comandante, aquele homem cor­pulento e imberbe, de que te hás de recordar. Ele perguntou-me por ti e por meus filhos. Podes imaginar que punhalada no meu coração. Que diferença entre estas duas viagens, tão próximas. Na primeira, eu levava comigo o meu paraíso. Nesta, se não fosse a esperança em Deus e o pensamento em ti, em nossos filhinhos, creio que já me teria suicidado. Deus me perdoe esta ideia criminosa. Como se pode deixar de crer em Deus, minha Maria Augusta? E se não fora Ele, que seria dos infelizes? Eu confio em Deus, volto-me para Ele, e acredito que Ele nos há de salvar.

Péssima viagem tivemos, meu amor. Encontramos o pampeiro, ao sopro do qual o navio, de mais a mais completamente descarregado, trambolhava insuportavelmente, não havendo quem se aguentasse em pé. Vencido o temporal, ficou-lhe a cauda, como lhe chamam os navegantes: a flutuação interior das águas, sob uma superfície aliás calma, produzindo oscilação contínua, a que poucos estômagos re­sistem. Consequências: um atraso de doze horas na viagem, chegando nós em Montevidéu no dia 16, às duas horas da tarde, quando devíamos ter madrugado naquele porto. Não saltamos, porque havia quarente­na. Na mesma noite seguimos, para aqui, onde aportamos no dia 17, às oito da manhã. Nova decepção: fomos condenados, sem o menor motivo, a uma quarentena de quatro dias, que terminará depois de amanha à mesma hora. Não desembarcaremos, pois, senão no dia 21 ao meio-dia, e apenas terei tempo de correr ao correio, primeiro que tudo, para depor esta carta, que seguirá no imediato. Mando-a por intermédio da Legação, por me parecer o endereço mais seguro.

Figura, pois, os sofrimentos desta viagem. Tivesse eu, ao menos uma pessoa da família, para conversar a teu respeito! O Tobias, bem vês, não pode servir para isso. Seu concurso, portanto, em relação ao meu estado moral é nulo. E, entretanto, o estado moral é so­bretudo o que me acabrunha. O meu estado físico também é mise­rável. Basta dizer-te que, tendo estado quase sempre doente, acho-me desde ontem de cama, e é deitada que te escrevo, com uma pasta so­bre o joelho, e o cotovelo apoiado ao leito do beliche. Tenho junto o meu relógio, com o teu retrato e o de Joãozinho na marca do livro, que Dedélia teve a abençoada lembrança de mandar-me. Como vai ela, a nossa boa filhinha? E Chiquita? Como vão? Como vão todos? Beija-as, acaricia-as, sacia-te dessa felicidade, que Deus te conserva, para alívio de tua aflição. Eu estou só, só…

E Ruizinho? Escreveste-lhe? Eu não sei o que faça, como pro­ceda. É preciso narrares-lhe o que há, mas de modo que ele se tranquilize. E que ele saiba bem da minha inocência, que ele fique certo de que seu pai é um perseguido sem culpa, vítima de maus inimigos. Receio às vezes que cheguem da Europa as contas da des­pesa dele, e que, não estando eu aí, não haja quem as pague. Meu Deus, como ficarão todos os meus negócios? Quem os despachará no Rio? Não sei de ninguém. Onde está o Juca? Carlito estará contigo?

Se está, é preciso que com ele vejas o que deixei na caixinha, que levaste no dia 5. Mandei-te a chave dela, na penca com as outras, pelo senhor Orrego Luco, secretário da Legação chilena. Ele ficou de entregá-las a ti mesmo. Se não, manda buscá-las. Em todo caso, comunica-me se as recebeste.

Verifica de Carlito se ele concluiu com o cunhado do Carlos os dois negócios meus, que são muito sérios: a questão da letra e a dos juros. Todos os meus papéis importantes estão nessa caixa. Car­lito que liquide também com o Afonso[3] a última prestação do empréstimo que contraí com esse amigo, para liquidarmos isso defi­nitivamente.

Quanto à casa em consertos, não te parece que deveremos fazer suspender as obras, até que se resolva esta crise?

Voltando, porém, ao meu estado de saúde… Vê a confusão em que labuta o meu espírito… Voltando a ele, ao meu estado de saúde… Acho-me creio que ameaçado de ter de fazer uma opera­ção bem delicada, bem séria, talvez urgente. Mas aqui, em tua au­sência e com os médicos deste lugar, não há forças, que me obriguem a isso. Preferirei morrer. E é agora que me aparece esta necessidade! Vê como as pedras correm atrás dos apedrejados. Talvez, diante des­ta urgência dolorosa, amigos nossos, como o Castro,[4] me pudessem facilitar a volta mais breve ao Rio, principalmente depois de conhe­cida a resolução, que acabo de tornar, de deixar a carreira política.

Hoje, com efeito, acabei de escrever o meu manifesto, o qual será publicado, logo que eu desembarcar.[5] Nele defino-me perante a revolução, mostrando, como tu bem sabes ser a pura verdade, que nela não tive a menor ingerência, e manifestando a minha delibe­ração de renunciar por uma vez à vida pública. Esta, no Brasil, de ora em diante, pertence aos violentos, aos ambiciosos e aos servis. Eu não quero pertencer mais senão a ti e a nossos filhos. E, fazendo a educação destes, terei servido a meu país do único modo em que atualmente pode servi-lo um homem convencido e desinteressado.

Estampado em Buenos Aires esse documento, remetê-lo-ei logo a ti, aos nossos amigos, à imprensa do Rio e da Bahia. E assim as ambições ficarão certas de que já não sou obstáculo a ninguém. E, em consequência, desde que eu lhes desobstruo o caminho, é natural que amainem os ódios. Não pode haver mais rivalidades contra um homem morto para a política. Creio que isso poderá auxiliar eficaz­mente os nossos amigos, nos esforços que empregarem, para remover os embaraços à minha volta pronta ao Rio de Janeiro.

Mas não estou resolvido a esperar por isso. Minha questão é que decididamente não posso continuar a estar longe de ti. É preciso, pois, que nos reunamos. Tratemos, portanto, deste ponto, que é, digamos assim, a minha preocupação exclusiva.

Como consegui-lo?

Se o telégrafo, abrindo-se de um momento para outro, nos anun­ciar a vitória da revolução, não tem dúvida nenhuma, voo de um momento para outro, no primeiro vapor, não a tomar parte nos fes­tejos do triunfo, com o qual nada tenho, mas a cair nos teus braços.

Suponhamos, porém, uma de duas: ou que a luta se prolongue, não sabemos até quando; ou que vença o governo, e que, nesse caso, não convenha o meu regresso imediato à capital.

Temos então dois recursos:

Ou vens, com os nossos filhinhos, para aqui, onde passaremos modestamente, numa pensão, um ou dois meses, aguardando o ensejo da volta.

Ou vais com eles para a Bahia, e lá irei juntar-me contigo. Ali, com efeito, estarei seguro, tanto mais quanto, não havendo estado de sítio por lá, não posso, como senador, ser preso, e tanto menos possível será que pensem nisso, quanto a publicação de meu manifesto, mostrando a minha irresponsabilidade na revolução, e divorciando-me da política, terá esfriado as cóleras, que o meu nome desperta nos círculos oficiais. Essa hipótese é a que eu prefiro.

Numa ou noutra hipótese, sabes onde te deverás munir de recursos para a despesa, assim como para custear a nossa estada, aqui, ou na Bahia.

Para a execução de qualquer destas combinações, porém, vejo uma grande dificuldade: a falta do telégrafo, enquanto ele continuar trancado pelo governo.

Para remediar a esse mal, o único meio, que vejo, é o seguinte. Se não sobrevier inconveniente, seguirei daqui, com destino à Bahia, no paquete inglês, que daqui parte no dia 8: o mesmo que me trouxe. Estarás pronta, no dia 2 de outubro, se te for possível, para tomar esse vapor na passagem, se eu estiver nele, o que saberás, mandando alguém a bordo. Se, porém, as circunstâncias me aconselharem a não ir nele, o melhor será seguires para a Bahia no primeiro vapor seguinte.

E agora me acode um meio, para me avisares telegraficamente de tua partida para aqui, ou para a Bahia. É pedires ao ministro chileno que, em telegrama ao ministro chileno aqui, com quem me entenderei, mande dizer-lhe: “Partiu hoje Norte” (se fores para a Bahia), ou “Partiu hoje Sul” (se vieres para cá). Do mesmo modo espero combinar com o ministro chileno aqui um telegrama ao daí, para te comunicar, se puder, a minha partida nestes termos: “Família chegará tal dia”, que quererá dizer: “Rui partirá tal dia”.

Não sei se ambos eles anuirão a nos prestar este serviço de caridade. Mas tenho esperança. Para esse fim escreverei ao de lá, e falarei ao de cá.

Agora um ponto mui importante. A hipoteca sobre a nossa casa vence-se em novembro. Não sei a quantos. É necessário que Carlito tome esses papéis ao Amaral, e verifique a data. Nela temos de pa­gar os setenta contos da hipoteca. O Marinhas ofereceu-se-me, para arranjar no Banco Rural Hipotecário essa quantia. Manda falar-lhe. Se ele não o fizer, Carlito sabe a que meio se deverá recorrer.

Tornando ainda à combinação das nossas viagens, devo avisar-te de que não me esperes, se não receberes comunicação telegráfica minha, e também não partas, sem mo comunicares do mesmo modo, nos termos acima ajustados.

Naturalmente aí terão cogitado em que as tuas cartas para mim não devem trazer o meu endereço. Seriam violadas no correio. As que depois do recebimento desta me escreveres, devem trazer, todas registradas, uma sobrecarta, por cima do envelope endereçado a mim, e com este adresse

Ilmo. Sr.
Ventura P. Gotusso — Buenos Aires
Reconquista 268.
Escritorio n.° 13 y 14.

Ou então para a Casa Rheinganz, cujo endereço o Jacobina conhece.

As minhas serão dirigidas a este, ou à Legação chilena.

Ia-me esquecendo uma encomenda em antigos negócios. Entre eles há uma letra do Carlos, guardada no lugar que sabes. Vence-se no fim deste mês. Carlito que cuide disso.

Acho bom que tu e ele procedam a um inventário cuidadoso de tudo nosso, que naquele lugar se acha, e providenciem, para que tudo fique na mais absoluta segurança.

Olha, minha querida Cota: todos os planos, que acima tracei para nos reunirmos mais depressa, eu os deixo entregues à tua re­flexão e aos conselhos de nossos amigos. Eles têm o espírito sereno, que me falta, e poderão deliberar melhor contigo. Eu me sujeito ao que resolverem. E, como não te moverás, sem me telegrafar, fico tranquilo de que não poderá ocorrer algum quiproquó, ou desencon­tro entre nós.

Manda fazer para ti um pince-nez, para não fatigares de todo a tua vista. O grau é n.° 5, vidro de hipermétrope. Encomenda na Casa Passos, Rio de Janeiro.

Há cinco horas que te escrevo, e não tenho ânimo de acabar. Mas principia a escurecer no camarote. Vou esperar a noite, a solidão e o sono. Se Deus mo der, que me traga algum sonho bom contigo e nossos filhinhos.

Lê a nossas filhas esta carta. É também para elas. É ainda para os nossos amigos íntimos, a quem não tenho tempo agora de escrever. Abraça-me com todos eles, com a tia Elisa,[6] Iaiá,[7] Ziu,[8] Carlito, Juca, o Palma,[9] o Amaral.

E Joãozinho? Cobre-o de beijos. Fala-lhe sempre em mim. Quem sabe se ele já não me esqueceu? Não, tu não o deixarás. E tu, meu anjo, minha alma, minha vida, podes crer que ainda outra mulher não foi mais seriamente amada por ninguém do que tu és

pelo teu Rui

Rui Barbosa. Cartas à noiva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982, pp. 242-248.

[1] N.E.: Moinho Fluminense, pertencente a Carlos Gianelli.

[2] N.E.: Alberto Yoakam, que foi ministro na Bolívia e esteve, por pouco tempo, à frente da Legação no Rio. O outro companheiro era José Eustáquio Ferreira Jacobina.

[3] N.E.: Afonso Caminha Pereira da Silva

[4] N.E.: Francisco de Castro, médico de Rui.

[5] N.E.: Carta a La Nación.

[6] N.E.: Elisa Viana, tia de Maria Augusta.

[7] N.E.: Guilhermina Viana Bandeira, mulher de Carlos Viana Bandeira.

[8] N.E.: Escolástica Viana de Vasconcelos, irmã de Iaiá.

[9] N.E.: Desembargador José Joaquim da Palma.