Rio de Janeiro, 17 de novembro de 1982

Te escrevo, Caio querido, com teu telefonema ainda quente, deixo Proust de lado e a burocracia editorial da lista de nomes e endereços e ceps, que me consola como um álbum de figurinhas. Ando gemebunda. Aguardo bem o livro[1] mas com aflição do número imprensa e dos falsos elogios dos amigos. Lançamento vai ser num lugar ideal,[2] o que para mim significa: a dois metros de casa, nem saio da Baixa Gávea. Detestei fazer a tal biografia, redigi durante dias tentando não fazer número nenhum, atingir uma espécie de grau zero qualquer. Vã. Tomo decisões que não sei se cumpro: levantar cedo, fazer exercícios na praia; ler os clássicos; arrumar a casa. Tudo bem ao chão porque disseram que sou toda ar com o trio gêmeos/leão/libra (por ato falho escrevi “virgo”). Fiz o mapa. Lê pra mim? O astrólogo achei vago, geral demais, muito do perguntador, o que tirava o charme dos adivinhadores e fazia dele, embora americano tranquilo, um sacador de pistas que eu mesma dava. E tudo tão caro! Olha, meu corpo todo dói.

O amor… Nos amamos loucamente porém enrascadas em psicanálise (pode?) e no “mulher com mulher”. Acaba quase todo dia. Não sei direito (tem que?) entrar para colônia gay, mas desejo mais escracho, mais verão sim, e entro numa pedagogia da desopressão que vira um papel. Precisaria ficar simplesmente mais quieta. Mas o que esse caso tem me virado… Não sei como, recuperando uma espécie de dom da sobriedade. Quando acaba fico grave, meio empertigada, com projetos muito ao chão; quando recomeça palpito, me sobressalto, tenho medo e eloquência. Há sim uma emperração fundamental que volta e meia. Cosa devo fare?

Isto aqui parece um bilhete desses de escola, passado por baixo da carteira. Como é que bruxas voam? Adoro te ouvir dizendo do projeto imenso e secreto. Sabe que também acalento a sombra de um poema inteiro interminável tipo William Carlos Williams? Às vezes acrescento um mote. Charles, até Chacal[3] andam alongando seus versos. Waly Salomão, na homenagem a Torquato [Neto], leu um belo longo bem beat. Queria que ele só lesse. De 15 em 15 dias sou hostess, com a Grajina[4] (“a dama de Gdansk”, segundo o Waly), no Barbas, de noites de leitura de poesia. Tem dado certo, semana que vem leio eu entre outros, mas no geral nenhuma mundanidade me atrai. Só fui a uma festa do PT e ao aniversário da Clare (você conhece?) onde quis tanto escrachar que ficou de propósito demais. Arre, só falo em mim. Vê se acha a Folha com o Loyola te lendo. Alguns livros sobre a mesa que atualmente, no vendaval, só folheio: o peruano César Vallejo, o português Carlos de Oliveira, o paulista [Roberto] Piva, o fundamental Rimbaud, e, à espera, Conrad de Heart of Darkness.[5] Mas cadê que eu paro? Ai que desejo de grande ordem, nem que fosse ao preço da certa aridez. Mas o amor…

Te beijo,

Ana C.

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[1] Carta de Ana Cristina Cesar publicada em O Estado de S. Paulo, São Paulo, 29/07/1995. Arquivo Ana Cristina Cesar/ Acervo IMS.
[2] N.S.: A teus pés, de Ana Cristina Cesar, foi publicado em 9 de dezembro de 1982.
[3] Charles Peixoto (1948-) e Chacal (1951-), pseudônimo de Ricardo de Carvalho Duarte, são dois poetas da chamada Geração Mimeógrafo, da década de 1970.
[4] N.S.: Grazyna Drabik, amiga de Ana Cristina e com quem ela traduzia poemas da poeta polonesa Wislawa Szymborska.
[5] N.S.: Romance de Joseph Conrad publicado no Brasil com o título de Coração das trevas.