Belo Horizonte, 30 de março de 1950

Velho Otto,

Não pense em possíveis ingratidões, que elas não existem. Toda mudança envolve ambientação nova, novos compromissos. E sendo retorno, temos que reatar velhos amores, reajustar nossa máquina bélica para outros empreendi­mentos sentimentais.

Não foi o que fiz. Deixei-me embalar por essa inefável monotonia belorizontina, que pode irritar os menos avisados, mas que tanto bem me faz agora. Aqui, velho Otto, plantarei as minhas últimas palmeiras.

Tenho ouvido queixas contra a cidade e a respeito da impossibilidade de se encontrar os amigos. Em ver­dade, vejo-os pouco, o que não me entristece nem aumenta a solidão minha. Ver não é tudo. É preciso amar. E de amor ando cheio. Amo a minha rua, o meu quarto, a cidade, os livros, a música que não ouço, até o meu semelhante. (Não falo nas mulheres, porque este é um dever cívico).

Confesso que saudades não me atormentam, nem me sinto culpado por essa lacuna. Sentimos saudade da última mulher, enquanto não encontramos nova. Quanto aos amigos, tenho-os presentes, recusando-me a qualquer suges­tão de distância.

Já comecei a trabalhar nos meus contos e novas soluções encontrei para o “Coelho”. Ele não morre­rá. Após a sua transformação em homem, entregue à sua própria sorte, retornará sob a forma de animal. Mas, para os meus olhos, voltou diferente. Não o vejo com a mesma ternura e pressinto nele gravíssimos defeitos humanos. Melancólico, fujo de casa, abandonando-o. (Um dia, terei notícias dele. Contam-me que ele se casou. Por falta de curiosidade, não ficarei sabendo se sob a pele de homem ou animal. A essa altura, já terei perdido qualquer interesse pela sorte dos homens e animais). O que está entre parênteses não faz parte da história, trata-se de simples in­formação.

Abraços para você, Helena, doutor Israel e família

do seu amigo

Murilo

Arquivo Otto Lara Resende/ Acervo IMS