S.l., 13 de julho de 2001

Sussekind,

Há muitos anos, creio eu, não ficava cinco dias sem trabalhar. Desta vez resolvi atender meu médico e manter o braço na tipoia, como ele pediu.

Foi uma boa experiência. Continuei a frequentar o escritório das nove da manhã às nove da noite. Mas sem desenhar, sozinho, na sala dos fundos, que é meu canto preferido.

A solidão nunca me incomodou, e lá ficava a ler, a pensar na vida, o que me faz muito bem.

E me detive um pouco no livro que me ofereceu, surpreso quando Platão conta a morte de Sócrates com minúcia tal que não parecia coisa ocorrida há tanto tempo. Os amigos a rodeá-lo, e ele a defender tranquilo sua decisão, reclamando dos que choravam. “Parem com essa choradeira. Foi para evitar isso que impedi a presença das mulheres”. Depois, o homem com a cicuta a explicar a Sócrates como ocorreria a sua morte, os sintomas, enfim, um relato tão perfeito que da sua veracidade começo a duvidar.

E, não sei por quê, lembrava Getúlio Vargas, a carta tão importante que nos deixou e de que nos orgulhamos como brasileiros, amantes – como ele – deste país. Ou os camaradas assassinados na Guerrilha do Araguaia, os velhos companheiros que conheci nos tempos áureos do PCB, contentes com a vida, e a ideia de que, juntos, mudariam este mundo perverso, pelo qual corajosamente se sacrificaram.

Li nos jornais o artigo de [Mário] Gibson Barbosa, tão atual, e os que discutem a crise energética, esta escuridão que ameaça nosso país, decorrente deste clima de incompetência e degradação moral em que vivemos.

Satisfatório foi, como você sabe, o nosso encontro em Niterói, com o prefeito Jorge Roberto e o empresário Selmo Treiger, que assumiu a direção das obras do Caminho Niemeyer. E a esperança que nos ficou de ver aqueles projetos concluídos, e o sucesso que o Museu de Arte Contemporânea conquistou e vai se multiplicar por todo o conjunto, tão variado, tão diferente do que nesse gênero foi até hoje realizado.

Falei com Cecília pelo telefone, preocupada agora com a exposição em Paris. Dela recebi um CD com poemas dos grandes poetas portugueses como Fernando Pessoa, Miguel Torga, Manuel Alegre (entre outros), musicados em fado. E isso me lembrou quando, nos primeiros tempos de Brasília – a terra ainda deserta, e nós afundados na poeira do cerrado – JK, para surpresa minha, me enviou por um portador uma edição primorosa de Os Lusíadas, de Camões. Presente que, na primeira viagem que fiz ao Rio, ofereci ao meu querido amigo e grande poeta Ferreira Gullar. O que agora volto a fazer com os CDs da Cecília.

Na minha última carta, prometi que falaria um pouco do espaço na arquitetura. Mostrar como essa ligação é fundamental e está presente na elaboração de todos os nossos projetos. Até o espaço vazio entre dois prédios, cabe-nos a tarefa de proporcioná-lo. E isso se repete e se multiplica quando se trata de um conjunto como no caso do Caminho Niemeyer, onde vários edifícios estão previstos.

O princípio arquitetônico que recomenda uma boa proporção entre volumes e espaços livres tem sido tão esquecido que vale exemplificar. No projeto da sede do Partido Comunista Francês em Paris, o programa incluía um grande auditório. Pensei numa cúpula, mas, se ela fosse localizada no pavimento térreo, seu volume, grande demais, não atenderia aquele princípio tão importante, o que me levou a situá-la no subsolo e com isso só uma parte dela apareceria, satisfazendo assim essa relação indispensável que a boa arquitetura deve assegurar.

Na sede Mondadori, a minha preocupação com a invenção arquitetural explica ter evitado a repetição de um mesmo vão, como é comum em qualquer colunata, desenhando-os com espaçamentos diferentes, uma solução inteiramente nova na história da arquitetura. E o texto de Rilke que transcrevo evidencia como até na natureza o espaço é importante, quando a admiramos: “Como árvores são magníficas, porém o mais magnífico ainda é o espaço sublime e patético entre elas”.

No Congresso Nacional em Brasília, por exemplo, se o espaço entre as duas cúpulas fosse reduzido em cinco metros, a boa relação entre elas estaria prejudicada e com isso a própria arquitetura.

Projetei, meses atrás, um pequeno centro cultural na Estrada das Canoas. Duas cúpulas se entrelaçando, e o problema principal que encontrei foi determinar o espaço vazio entre elas; era dele que dependia a beleza da arquitetura.

A estrutura que você calculou para a Catedral de Niterói, com os três apoios sugeridos, criava entre eles e a cúpula um espaço que você deixou para eu definir a meu critério. Foi o que fiz, ampliando as seções do concreto na procura da forma desejada. É um exemplo da boa relação que deve existir entre o arquiteto e o engenheiro. Um, usando a sua técnica em toda plenitude; o outro, respeitando-a, mas livre para todas as suas fantasias.

É claro que vencer os espaços livres foi sempre um desafio para os arquitetos, e nisso, Sussekind, você tem me ajudado muito. Como eu gostei de ver concluído o grande auditório de Constantine,[1] e ouvir de você, que o calculou: “Este vão é um recorde mundial!”.

Até nos interiores dos nossos projetos deles nos ocupamos, usando certos truques. Para lhes dar uma impressão de maior amplitude, por exemplo, reduzimos o espaço que lhes serve de acesso, ou eliminamos apoios, ou criamos paredes revestidas de espelhos. Sussekind, é tal a minha preocupação com o problema do espaço na minha arquitetura que, ao desenhar uma planta baixa, nela desenho também uma figura humana na mesma escala. É uma forma prática de avaliar se o espaço previsto é suficiente.

Sabe, Sussekind, até ao desenhar as minhas esculturas preocupei-me com os espaços vazios que nelas existem.

Ninguém imagina como deles cuidei e como, para bem proporcioná-los, as modifiquei. Sempre as imaginei ao ar livre, nas praças, como que feitas para o povo.

Lembro-me até os almoços que tive em Nova York com o grande pintor Miró, e ele a reclamar dos espaços fechados em que suas obras eram apresentadas, sem saber que um dia, nos grandes espaços livres da Défense, uma escultura sua seria exibida.[2]

Apoiado pelo prefeito Luís Paulo Conde, localizei as minhas esculturas na areia da praia do Leme. O César Maia, sem consulta, as retirou de onde estavam tão bem. O que fazer?

Recordo André Malraux quando – inteligente como era – enriqueceu com esculturas femininas uma das praças de Paris. Era um homem fino, sensível, amigo das artes e dos artistas de seu país. É claro que não podemos esperar o mesmo de César Maia, que na sua mediocridade confundiu autoridade com grosseria.

Falta de respeito que desprezo e que só o compromete.

Um abraço,

Oscar

Conversa de amigos: correspondência entre Oscar Niemeyer e José Carlos Sussekind. Rio de Janeiro: Revan, 2002, pp. 154-159.

[1] N.S.: A Universidade de Constantine (UMC), na Argélia, foi projetada por Niemeyer em 1969.
[2] N.S.: A obra Dois personagens fantásticos, de Miró, está instalada em frente ao centro comercial Quatre Temps, no La Défense, centro financeiro de Paris.