Navilouca: uma revista como o Rei Momo

Rio [de Janeiro], 10 de maio de 1972

Hélio, querido:

Salve.

Acho que não apenas eu não tenho escrito muito: pergunto a Waly e a todo mundo e parece que ninguém tem falado: deve ser falta de assunto: pelo menos o meu caso. Desde o carnaval não tenho escrito nem nada pra ninguém – a “Geleia Geral”[1] eu mesmo acabei com ela no momento que me pareceu mais adequado: no fim do verão. E tenho estado transando tanta coisa ao mesmo tempo que é a maior loucura. Principalmente a Navilouca; que está dando um trabalho dos diabos e ainda não está nem na gráfica. (…) Ele [Haroldo] me telefonou e mais tarde nos encontramos na casa de Luciano,[2] onde a Navilouca está sendo preparada lenta e muito cuidadosamente, conseguimos (eu e Waly, que transamos juntos esse almanaque), conseguimos reunir um material de primeiríssima ordem. Foi uma luta: primeiro para driblar, recusar etc. colaborações não requisitadas; segundo para fazer chegar às nossas mãos todas as matérias pedidas à “equipe” que selecionamos para a revista – acho que você faz ideia das pessoas, mais ou menos entre você, Waly, eu, Otávio, Ivan, Luciano e Óscar, Décio, Haroldo, Augusto, Julinho, Jorge, Duda, Rogério, Chacal etc. (…) Acho, seguramente, que será o acontecimento, no gênero, mais importante aqui dentro por esse tempo todo. Matérias fantásticas, absolutamente incríveis, tudo. E o trabalho de produção gráfica (Luciano, Óscar e mais Ana) está ficando alguma coisa como nunca apareceu antes por aqui. Exceto na Invenção.[3] (…)

A Navilouca (você já sabe) é uma revista em número único, como o Rei Momo. A ideia é essa. Se pintar outra, pintará com outro nome, outra transação, outra coisa bem diferente. Espécie de antologia, almanaque, revista indefinida, qualquer coisa assim. Precisamos que você envie, com igual urgência, um slide seu, foto sua, carinha do boneco para a capa, que vai ser uma espécie de mosaico com fotos de nós todos, fotos bem loucas. Quero ver se a revista está nas bancas até o final de junho, antes das férias de julho. A capa e contracapa serão coloridíssimas: na capa essas fotos de nós todos (menos os paulistas, convidados especiais) e na contracapa aquele prato sangrando do início de Nosferato. Essa revista vai ficar a coisa mais bonita, mais violenta e mais incrível que você possa imaginar. Deixe com a gente.  (…)

Quanto a Glauber,[4] eu mesmo desisti de tentar conversar sobre o assunto com bastante gente, exceto Ivan e Otávio.[5] Sempre que as coisas assumem um caráter maçônico, eu me emputeço e me afasto. Se (teu) pôster subsisto ia ser publicado no Verbo, não foi porque no mesmo número deveria sair uma matéria encomendada a mim, Ivan e Otávio, sobre essas transações de cinema por aqui.

Os baianos censuraram a matéria (…) porque se falava de Glauber. Então eu retirei teu pôster e guardei pra Navilouca. Daí você imagina: não estou querendo papo sobre esse assunto com essas pessoas que são ótimas e muito queridas, mas que não compreendem a exata extensão das filhadaputices de Glauber com relação ao problema do cinema – que eles consideram coisa isolada ou sei lá o quê do problema geral… dá? (…)

Agora que não tenho mais “Geleia”, estou a fim de fazer um outro tipo de trabalho rápido para um jornal qualquer (possivelmente o Domingo Ilustrado mesmo, que – imagine – me chamou), uma série de dez entrevistas bem absurdas com o elenco da Geleia. Ainda esta semana quero acertar isso com o jornal e mandar brasa correndo, porque se der pé vai ser outra agitação. O que mais me aborrece agora é o meu filme que quase comecei a fazer há mais de mês e tive de parar de repente por falta de dinheiro. Não sei se te falei nele antes. O título mais ou menos provisório, não sei, é Crazy Pop Rock. É pra filmar com dezesseis com som direto, na marra. O elenco é uma transação bem legal porque tem uma estrela da nossa TV (Maria Cláudia) e mais Ana, Simão, Erico Freitas e umas outras figuras. Um filme bem simples, que, no entanto, não me sai por menos de seis milhões – dinheiro que ainda não consegui juntar até agora. (…)

Filmes mesmo por aqui que prestem só os de Ivan. Não passa nada, é um deserto. Agora estreou Os inconfidentes, do Joaquim Pedro: mais um filme histórico nacionalista, sei lá o quê: horrível. Glauber vai adorar. Disse o Joaquim Pedro numa entrevista ao JB que o filme é um “estudo sobre o comportamento de presos políticos”. Olha que malandragem mais filha da puta… é incrível. Se você visse o filme…

Reticências!

Bom, meu filho, beijos e abraços. Show de Gil e Gal foi ótimo, Caetano (machão, Hélio Oiticica, eu sei, ora) está em Salvador curtindo e vai ficando. Gil deve chegar por aí um dia desses. Por aqui apesar de lindíssimo e muito maravilhoso, só transou de yin e yang, essa coisa que eu acho meio chata sendo assim mas que, enfim, pode ser apenas malandragem dele: “O Tropicalismo foi um movimento yin – não sei o que lá é yang” etc. Acho meio pobre. Mas as músicas estão fora dessa moral aí: e o som, da pesadíssima. (…)

Não se aborreça por tanto silêncio daqui e me escreva, que eu te amo.


 A voz do sertão

Teresina, 7 de junho de 1972

Hélio, querido: aqui é a voz do sertão. Foi de repente que eu tive de sair do Rio para um repouso necessário e compulsório no Piauí: você deve ter recebido a carta que mandei poucos dias antes de vir e, se já respondeu, Ana manda logo sua resposta aqui pra mim. Não sei bem, mas como estou precisando mesmo de uma espécie de repouso bem completo, acredito que termino ficando em Teresina até o fim de julho. (…)

Estou te mandando essa coisa – Gramma – anexa, acho que você compreenderá: isso é uma espécie de “milagre”: você não conhece o Piauí, e esse jornal, feito de repente por uns sete a oito meninos aqui de dentro, com idade variável de dezesseis e vinte anos, tem, para nós que começamos a bagunça com Presença e Flor do Mal, uma significação gratíssima. Eles tratam problemas daqui mesmo (veja que maravilha de capa), mas com uma radicalidade que a superprovíncia não conseguiria suportar e que, nem mesmo no Rio, eu acho, foi conseguida em nossas tentativas. Evidentemente, o jornal foi apreendido pela Polícia Federal quatro dias após o lançamento, e os meninos (em sua maioria secundaristas ou vestibulandos), chamados a depor. Note o nome – Gramma, com dois “emes”: mil implicações. (…) Acho isso fantástico, de uma coragem e de um tesão formidáveis. (…) Para nós todos, que de uma maneira ou de outra estivemos na agitação dessa imprensa subterrânea, o trabalho desses meninos do Piauí, o supergueto, foi como um resultado extraordinário de nossas investidas. (…)

Bom: espero que você vibre, como nós vibramos, com essa Gramma de Teresina. Os garotos vão tentar tirar um outro número na marra, agora, e tão logo saia (se sair), eu te mando. Me escreva a respeito disso, por favor – inclusive porque seria fantástico para os meninos daqui. Eles andam fodidíssimos por causa do jornal (ah, se você conhecesse o que é o Piauí…), e numa terra onde não acontece nada, onde nunca passou um filme de Godard e onde cabeludo não entra na escola nem nas casas de famílias, pode crer, essa Gramma é o que eu disse antes: uma espécie de milagre. E vai render. (…)

Fico aqui até o comecinho de agosto.

Mande notícias. Muito amor.


Ocupar espaço, amigo

 [Sem data]

Almir,

rasgue em seguida, please, no documents. não estou encontrando outro jeito de falar com você. há muito confete no ar. na verdade mesmo eu só quero é que você me compreenda e pronto, sem precisar tomar qualquer “providência”. escute: não está na hora de transar derrotas. eu digo na porra da “geleia”: ocupar espaço, amigo. estou sabendo, como você, que não está podendo haver jornalismo no brasil e que – já que não deixam – o jeito é tentar, não tem outro que não seja desistir: ou a gente ocupa e mantém a porra do espaço, pra utilizá-lo, pra transar, ou a gente desiste. (…)

eu acho, sinceramente, que a última hora não deve parar numa hora dessas: entregação: dar de presente para a agência nacional, por exemplinho? eu quero manter esse estado crescente, porque eu acredito firme que sem malandragem não há salvação: isso é perigoso de dizer, mas assim mesmo eu corro o risco porque você é você: abaixo esse bom gostinho da gente. abaixo concordar com esse palavreado. devemos resistir, na marra e quebrando a cara: você pensa que eu faço aqueles títulos do joão ribeiro[6] de brincadeira: não é: é a sério mesmo. cordel. notícias: gb é dor e neurose de pavor. o que é isso, perguntam os órgãos de informação/inteligência/polícia. responde a redação: greve! pode? tudo tem um tempo e tudo também é bom. se a última hora parar, eu paro idem. eu não quero parar porque eu acredito no duro que “cada louco é um exército” (gomide 57 anos na contracapa da última flor do mal). (…)

eu sou um homem radical, ou eu morro ou eu vivo. Ou eu morto ou eu transando: disso depende tudo meu. não é óbvio? pois eu não quero influenciar nenhuma resolução sua, com respeito à “QUESTÃO”, mas queria muito que você compreendesse a minha posição contrária à sua: transe o que você quiser, mas compreenda: eu te amo: vamos segurar esse espaço e utilizá-lo: a ironia não tem limites e as notícias podem correr por aí: rasgue isso depois, amigo: a questão é só uma: sim. o não é o próprio diabo. sim, amigo, sim. expliquemos pois: SIM = Deus. o amor é igualzinho ao ódio: métodos, guerrilhas; entregação? NÃO. a última hora para e eles tomam conta: eu caguei pro meu empreguinho, isso é sempre possível, aparece, mas está na cara que nenhum outro jornal do brasil, entre rio e sp, barra-pesada, deixa (sei lá por quê) que eu escreva aquela geleia maluca brasileira. joão ribeiro é um pulha, e eu estou cansado de saber. eu não fecho com ele, mas eu fecho (no possível) o meu espaço: infinito enquanto duro. (…)


Fonte: Torquato Neto: essencial (Autêntica, 2017), organizado por Italo Moriconi.

[1] N.S.: “Geleia geral” é o título da canção escrita por Torquato e Gilberto Gil, incluída no álbum “Tropicalia ou Panis et circenses” (1968). A expressão também daria nome à coluna de Neto no jornal Última hora, publicada entre 1971 e 1972.

[2] N.S.: Luciano Figueiredo, artista plástico.

[3] N.S.: Revista do grupo Noigandres que, entre 1962 e 1967, serviu como veículo de comunicação dos fundadores da Poesia Concreta.

[4] N.S.: Torquato Neto, adepto do Cinema Marginal, exprime sua divergência com o Cinema Novo de Glauber Rocha. Neste momento, Torquato alia-se radicalmente à contracultura, tornando-se partidário de um movimento que dialogasse com o classicismo hollywoodiano e as chanchadas. “Glauber já era”, escreveu na coluna “Geleia Geral”.

[5] N.S.: Ivan Cardoso e Luiz Otávio Pimentel, cineastas.

[6] N.S.: João Ribeiro, ex-editor do jornal Última hora.