Recife, 12 de março de 1979

Querida Rachel,

Anteontem, sábado, recebi um telefonema de Adonias dizendo amigavelmente que vocês tinham resolvido me candidatar à Academia. Sei perfeitamente como essas coisas são solicitadas pelos outros, de modo que estou mais do que cons­ciente do gesto fraterno em que importa o oferecimento. Assim, seria um orgu­lho imperdoável, e uma antipática descortesia minha, recusar aquilo que outros tanto desejam e que a mim é oferecido por parte de escritores da melhor cate­goria.

Com a fraterna amizade que nos liga, quero deixar tudo bem claro a esse respeito, pois preciso que você, como sempre fez, me ajude com sua proteção, no caso mais indispensável do que nunca, pelos motivos que se seguem.

Quando o nosso Adonias me levou certa vez à Academia, para que eu, segundo suas próprias palavras, visse como era o ambiente lá, resolvi de uma vez por todas que não tomaria iniciativa nenhuma neste sentido: se tivesse de aconte­cer aconteceria naturalmente, por iniciativa de outros, e não minha. Não lhe escondo que existem, dentro do meu universo literário, muitas coisas que se completarão ou mesmo se realizarão com minha entrada na Academia: entre outras, por exemplo, o fato de José de Alencar ser patrono de cadeira, e o de Silvio Romero e Euclides da Cunha terem a ela pertencido. Mas sou uma pessoa cheia de contradições, e, por outro lado, não me sinto muito bem nessas entidades institucionalizadas, como minha experiência no Conselho Federal de Cultura terminou por me demonstrar.

Foi por causa desses sentimentos contraditórios que, uma vez, não tive dificuldade em responder afirmativamente a um seu pedido: você queria que eu lhe prometesse nunca entrar para a Academia. Eu prometi e estava disposto a cumprir o prometido. Mas, segundo ouvi também de sua parte, seu pedido era fei­to por causa da implicância dos acadêmicos contra as mulheres. Agora, você já está lá e já me fez o pedido contrário. Entraram também outros amigos, como Octávio de Faria e José Candido de Carvalho, os quais, segundo Adonias, estão também entre os que conspiram a meu favor. Também não esqueço que os nossos José Lins do Rego e João Guimarães Rosa foram da Academia, o que anima, em mim, à parte do meu espírito favorável a ela.

Por isso, estou juntando a esta a carta através da qual me candidato, di­rigida ao presidente e escrita nos termos que Adonias me ditou. Peço-lhe que pese os argumentos favoráveis e contrários e decida, com a maior liberdade, se dá entrada a ela ou não. Peço-lhe sobretudo que veja se há possibilidade de derrota, porque se não sou tão orgulhoso que recuse o que vocês tão generosa­mente me oferecem, também não sou modesto a ponto de me expor tranquilamente a uma recusa, num caso em que, sinceramente, não está empenhado um dos maiores sonhos da minha vida. Só a você posso falar com essa franqueza e de coração aberto como venho fazendo: se entrar para a Academia, principalmente agora, com você e os outros amigos por lá, ótimo; mas terminar a vida sem me candidatar à Academia, para mim não seria nenhum drama: até haveria certas compensações interiores, mesmo para meu orgulho, que se satisfaz muito mais no despojamento do que nas honrarias. Por isso, ruim mesmo, o pior de tudo, seria postular e perder, o que você – como sertaneja, ama e senhora minha – há de compreender e perdoar.

O que eu quero mesmo, portanto, é que vocês examinem o problema principal­mente sob este ângulo. Se o quadro estiver mais para regular do que para ótimo, não entreguem a carta. Se estiver ótimo a princípio e depois mudar, me avisem para que eu retire a candidatura – e afaste, de vez, a Academia de minhas cogi­tações. Adonias acha que eu ganho, e me disse, pelo telefone, que eu o conheço e que portanto devo saber que ele não iria me expor a uma situação di­fícil – o que realmente é a expressão da verdade. Mas acontece que eu sou um candidato tão ruim que não sei nem quais são aqueles que poderiam votar em mim. Num primeiro instante, além dos já citados, ocorrem-me apenas os nomes do doutor Alceu, de Afonso Arinos, de Antonio Houaiss, de João Cabral e Jorge Amado: acho que eles, se conversados a tempo, poderiam votar em mim, mas à distância não tenho verdadeiras condições de avaliar, nem de conversar com ninguém – e sei que nessas coisas o problema do tempo e da rapidez é fundamental. De modo que, infelizmente, vou ter que deixar tudo a cargo de vocês, que estarão inclusive no direito de dizer: “Mas que presunçoso! Nós oferecemos a ele a possibilidade que outros solicitam com tanto empenho e ele ainda nos vem com luxos e hesitações!” Mas sei que, com a bondade que sempre me demonstraram, todos vocês vão me perdoar. Se surgir qualquer dificuldade, não se mortifique nem se dê a muito trabalho por causa dela: somente peço que me avise a tempo; fique tranquila e de coração leve, porque a retirada da candi­datura, feita a tempo, até me resolverá de vez uma das muitas dilacerações e contradições em que me debato. Sei que meus amigos nada têm a ver com minhas vacilações nem podem se estar se dando a sacrifícios por causa delas, mas nasci assim e infelizmente parece que vou morrer assim, esperando sempre que circunstâncias exteriores e atos alheios tomem por mim as decisões e os ca­minhos que de fato deveriam ser escolhidos firmemente e exclusivamente por mim.

Enfim, resolva como achar melhor e mande suas ordens e instruções. Dê um abraço fraterno em Oyama e Maria Luiza,[1] e, como sempre, receba os protestos de amizade e fidelidade de seu vaqueiro, seu cabra e seu vassalo

Ariano

Arquivo Rachel de Queiroz/ Acervo IMS.

[1] N.S.: Oyama de Macedo, marido de Rachel de Queiroz, e Maria Luiza de Queiroz, irmã da escritora.